Um ano tanto pode ser medido tanto pelo que se fez quanto pelo que não se fez. Tanto pelos bens e males que trouxe quanto pelo que dele se esperava e não se cumpriu. Um ano é esperança, mas é também expectativa. Ao final, a sua mensagem pode ser de satisfação ou de frustração.
Quem quiser olhar o 2014 do Direito Eleitoral vai encontrar motivos de sobra para aplaudir, mas também poderá trilhar o caminho da reclamação, da queixa - da indignação, até. Verá, por exemplo, o país realizando a sua sétima eleição direta para presidente da República desde a redemocratização (1989, 1994, 1998, 2002, 2006, 2010 e 2014). Enxergará, contudo, eleições cada vez mais criticadas pelos que exigem reformas normativas de ajustamento do sistema político. Os pleitos estão mais caros, mais dependentes do norte dado pelo marketing e menos inteligíveis, dada a inflação de regras e a selva de entendimentos sobre elas.
Tomando por amostra a eleição presidencial, constata-se que a campanha vitoriosa dedicou mais de R$ 70 milhões à sua equipe de propaganda. A competência do time, a notável qualidade das peças produzidas e o êxito da estratégia adotada não devem esconder a verdade: é muito dinheiro. Esse tipo de despesa acaba por gerar uma corrida dos adversários por gastos análogos e, com isso, o custo de uma campanha presidencial se torna, pleito a pleito, cada vez menos racional. Cada vez menos suportável para candidaturas de médio porte. A polarização eleitoral PT-PSDB, com a rara competição de um player independente - como o PSB, desta vez - decorre, em muito, disso. Só quem congrega grandes financiadores consegue competir. Não são, portanto, os votos os elementos primários da disputa eleitoral, mas os recursos que viabilizarão a campanha. Sad, but true.
A imensa abstenção eleitoral no pleito presidencial, em larga medida, também pode ser explicada por isso. Mais de 30 milhões de brasileiros deixaram de comparecer às urnas. Mais de 7 milhões votaram em branco ou nulo. Mais de um quinto dos eleitores aptos a votar ignoraram ou se rebelaram contra a imposição de escolha entre nomes que não eram os seus preferidos. O voto obrigatório é uma falácia, uma obrigação formal que pode ser ultrapassada com uma multa que custa menos que uma cerveja e um tira-gosto (entre R$ 1,05 e R$ 3,51, eleváveis a R$ 35,14, caso as condições do eleitor comportem dito aumento). Esse é o custo de um domingo; para muitos cidadãos. O preço de um dia que não merece ser perdido com candidatos que não lhe trazem empolgação alguma.
Nem o fato de as eleições presidenciais - e muitas estaduais - serem definidas em um resultado bastante apertado deve sombrear que se um em cada cinco eleitores não quis votar, o voto já deixou de ser um dever inescapável. Se um décimo da abstenção, dos votos brancos e nulos, tivesse adotado outro rumo, comparecendo e votando em um dos dois contendores, o resultado da eleição presidencial poderia ser outro. Não votar passou a ser um direito a custo certo. Só falta a norma dizer aquilo que os fatos já sacramentaram.
O eleitor não deve ser criticado por fazer escolhas assim. Se é difícil para ele escolher um candidato entre dois, pior ainda é discernir um entre centenas. As coligações proporcionais seguem fazendo eleitores de tolos. Vota-se em candidatos de um partido, elegem-se de outros. Escolhem uma pessoa, elegem, às vezes, um adversário albergado na mesma coalizão partidária, alimentada não por congruências ideológicas, mas por táticas guerrilheiras de acesso ao tempo de propaganda, ou de formação de quocientes eleitorais.
Eleger o deputado estadual ou federal de predileção é uma operação lotérica: quem tem mais votos pode não vencer. Quem pertence ao partido de preferência do eleitor pode ser escanteado na babel que são as alianças eleitorais. O voto, depois de posto na urna, converte-se em coisa de ninguém. A alquimia de sufrágios dados a terceiros coligados pode fazer com que as escolhas do eleitor façam de seu escrutínio tabula rasa. Quer um trabalhador, elege um empresário; quer um liberal, elege um estatista. Melhor não correr riscos, melhor não votar.
Os partidos - com honrosas exceções - nascem sem alma política. Não são associações em torno de ideias, mas de pessoas ou conveniências eleitorais. Prova disso é que, passada a eleição, surgem novas possibilidades de gênese de legendas. Um partido novo é uma porta aberta para migrações e a bancada do governo pode engordar um pouco com essas novéis siglas. Além disso, a possibilidade de acesso ao fundo partidário, em alguns casos, converte-os em um negócio como outro qualquer. Fundo, aliás, digno de maiores questionamentos: por qual motivo o povo, por seus tributos, deve financiar instituições a que a lei expressamente classifica como privadas?
Essa questão implica outra, quase inversa: por que o financiamento empresarial de campanhas deve ser permitido? É certo que ele gera afinidades perigosas entre o financiado e o financiador, mas o que poderia superar o problema?
O financiamento público, cogitado como resposta, não é indene a críticas: ele importa em alocar recursos que poderiam estar em outras finalidades nas mãos de particulares para a realização de despesas discricionárias. A alternativa do financiamento exclusivo por doação de pessoas naturais parece ser a menos abstrusa, mas, salvo se houver um surto de colaborações, é improvável que alcancem suficiência para responder pelo custo milionário - em breve, bilionário, ao que tudo indica - de algumas campanhas.
A reforma política, essa esfinge, é cada vez mais suplicada. Não há, todavia, consenso sobre como colocá-la no papel, e, menos ainda, sobre como fazer atuar suas eventuais regras. Dela não se sabe nem o como nem o quando. Em 2014, nenhuma, absolutamente nenhuma, melhoria normativa veio à luz no sistema eleitoral brasileiro. Lei alguma, emenda constitucional alguma: nada. Tudo como antes no quartel de Abrantes.
A jurisprudência, porém, seguiu sua marcha. Algumas decisões do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral destacaram-se durante o ano e merecem ser lembradas:
1) O TSE editou as resoluções de regência dos procedimentos para as eleições de 2014. Dentre esses atos estava a Resolução 23.396/2013, dirigida à disciplina dos trâmites da noticia-crime e do inquérito eleitoral. A Procuradoria-Geral da República considerou inconstitucionais os arts. 3º a 13 desse diploma, por subtraírem atribuições do Ministério Público, submetendo a abertura de investigação ao Judiciário. Ajuizou a ADI 5104 e o STF, apreciando-a, suspendeu, cautelarmente, o art. 8º respectivo. A regra determinava que, ressalvadas as situações de prisão em flagrante, o inquérito seria instaurado por determinação da Justiça Eleitoral;
2) O STF também considerou inconstitucional a Resolução 23.889/2013 do TSE. O diploma, com base no parágrafo 1º do art. 1.º da Lei Complementar 78/1993, redefiniu as bancadas dos Estados na Câmara Federal e, por conseguinte, o tamanho das assembleias legislativas. O Congresso Nacional editou o Decreto Legislativo 424/2013, que suspendeu os efeitos da Resolução. Contra ela foram propostas as ADIs 4947, 4963, 4965, 5020, 5028 e 5130. Para declarar a validade do Decreto Legislativo foi proposta a ADC 33/DF. Tanto a Resolução quanto o mencionado dispositivo legal foram considerados inconstitucionais. A delegação ao TSE de atribuição do critério de distribuição das cadeiras foi reputada desconforme o §1.º do art. 45 da Lei Maior, por usurpação da competência legislativa complementar do Congresso Nacional. As bancadas ficaram do tamanho que eram e as cadeiras disputadas em 2014 foram as mesmas de 2010;
3) O STF, ao julgar a ADI 1817, considerou constitucional o art. 4.º da Lei 9.504/1997, que fixou a exigência de que os partidos políticos estejam registrados no TSE há pelo menos um ano da data das eleições para dela poderem participar. Entendeu a Suprema Corte que o legislador conta com autorização constitucional para conformar esse prazo;
4) Em caso de falecimento do cônjuge, não se aplica o enunciado da Súmula Vinculante nº 18, que considera que o desfazimento do vínculo conjugal durante o mandato não é apto a afastar a inelegibilidade por parentesco (§7.º do art. 14 da CF). Essa foi a posição do STF no julgamento do RE 758461;
5) Na apreciação da ADI 1082, o STF considerou constitucionais as regras do art. 7.º e do art. 23 da Lei Complementar 64/90. Esses comandos conferem ao juiz eleitoral a possibilidade de julgar a causa com base em fatos não alegados pelas partes, no interesse público de lisura do pleito;
6) O TSE entendeu que as regras da Lei 12.891/2013, a “Minirreforma Eleitoral”, não seriam aplicáveis às eleições de 2014, ao responder à Consulta 100075, formulada em busca desse esclarecimento. A discussão foi centrada sobre quais regras inseridas pela mencionada lei seriam relativas ao processo eleitoral e quais não teriam essa natureza. A maioria mínima (4x3) se formou no sentido do afastamento geral da incidência das regras introduzidas pelo diploma das últimas eleições gerais;
7) O TSE, ao julgar o RO 15429, indeferiu o registro de candidatura de José Roberto Arruda, que pretendia disputar o cargo de governador do Distrito Federal. No julgamento, a Corte assentou que, ainda que o fato gerador da inelegibilidade - a condenação por improbidade administrativa em segundo grau, em situação na qual presente o dolo, o dano e o enriquecimento ilícito - tenha ocorrido depois do protocolo do pedido de registro, cabe à Justiça Eleitoral, enquanto não esgotada a jurisdição ordinária, apreciá-lo. Ou seja, alterou o entendimento que predominava, pelo qual as inelegibilidades ou são verificadas na data do registro, ou, caso supervenientes ou constitucionais, em sede de recurso contra a expedição de diploma. O art. 15 da Lei Complementar 64/90, com a redação dada pela Lei da Ficha Limpa, foi o fundamento da interpretação apresentada no caso;
8) Nos autos do RO 56635 foi deferido o registro da candidatura de Cássio Cunha Lima ao governo do Estado da Paraíba. O candidato havia sido condenado por abuso de poder e conduta vedada nas eleições de 2006 e era questionado se o prazo de oito anos de inelegibilidade seria contado da data daquela eleição em primeiro turno (5 de outubro) ou se do segundo turno (29 de outubro). Preponderou o entendimento segundo o qual a contagem partiria do primeiro;
9) Nos ED no RO 237384 foi deferido o registro de candidatura de Paulo Maluf à Câmara Federal. O TSE, mudando o posicionamento exarado no mesmo processo, entendeu que, como a decisão que o condenara por ato de improbidade administrativa mencionava a prática de ato culposo, não caberia à Justiça Eleitoral reavaliar os fundamentos da decisão para dela extrair o dolo apto a ensejar a situação de inelegibilidade;
10) Após a proclamação do resultado da eleição, o PSDB requereu à Justiça Eleitoral a realização de uma “auditoria” do resultado eleitoral, com a formação de uma comissão suprapartidária para tal. O TSE, ao analisar a AE 157804, deferiu o acesso do partido aos dados concernentes às eleições, mas negou a formação da comissão pretendida, porque importaria na criação de obrigações a terceiros.
Além dessas decisões, merece nota o que decidido pelo TSE na PC 37, que reconheceu a prescrição das prestações de contas partidárias anteriores a 2009, nos termos do que consta atualmente disposto no art. 37, § 3.º, da Lei 9.096/1995, com a redação dada pela Lei 12.891/2013.
Também digo de menção é o fato de haver sido aproveitado o momento de comparecimento do eleitor para a realização de consulta plebiscitária no Município de Campinas. Foram elevadas à condição de distritos duas regiões - Ouro Verde e Campo Grande. O fato revela a possibilidade de ser maximizado o ciclo eleitoral para a implementação de consultas populares.
Talvez seja essa a senha para a reforma política. A cada dois anos, regularmente, os eleitores poderiam fazer referendos sobre temas decididos pelo Congresso. Em algum tempo, o processo estaria finalizado, na conformidade do desejo do eleitor.
Sobra ao cidadão esperar vigilante por um 2015 de evolução. Tudo, no entanto, dependerá dos escolhidos em outubro, do acerto do peso verde dos nossos dedos.