Por Melina Girardi Fachin
Caracterizar 2017 como o ano da crise é, possivelmente, o único consenso que reúne as mais variadas percepções da realidade. No Direito Constitucional não foi diferente e, por isso, vivenciamos dificuldades no momento atual do constitucionalismo. Não há, todavia, um sentido único sobre o que a crise representa. É preciso, portanto, defini-los nos vários campos em que se manifestaram, bem como os significados que ainda pode assumir.
Um dos sentidos mais evidentes da crise vem da economia. A co-causalidade é flagrante: os problemas econômicos são produtos e produtores, ao mesmo tempo, dos problemas constitucionais vividos. A crise fiscal e o déficit das contas públicas talvez componham o aspecto mais relevante a demonstrar essa relação.
Apontado como um dos fatores da crise, o projeto da democracia social imbuída na constituinte passou a ser foco das reformas atualmente em discussão. A Constituição de 1988, com a previsão dos direitos e garantias sociais, esteve sob forte ataque com a justificativa de que tais previsões constitucionais não possuíam sistema de financiamento sustentável. Deu-se, assim, azo à reforma trabalhista e à necessidade de flexibilização de muitos direitos sociais constitucionalmente previstos. Da mesma forma, é esse discurso que orienta a reforma da previdência em curso.
Não foram atacados com a mesma intensidade, no entanto, outros fatores que contribuem de forma igual ou ainda mais intensa para o agravamento do rombo nas contas públicas. Um exemplo é o aumento dos gastos públicos com regalias constitucionalmente desproporcionais, travestidas de garantias estampadas nos muitos auxílios que dilatam o já inchado orçamento. Destaco aqui a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no primeiro semestre que flexibilizou o acúmulo de vencimentos, com a possibilidade de recebimento acima do teto em caso de acúmulo de cargos públicos. Assim, o teto deixa de existir.
Outro fator de impacto relevante no problema fiscal é a endemia da corrupção, que também se traveste numa crise ética. O combate à corrupção comporta necessariamente a defesa da Constituição e, portanto, deve ser feito em fortalecimento e não em detrimento dos parâmetros constitucionais.
Portanto, encontramos mais um sentido para a crise no abandono das disposições constitucionais em situações relevantes para a superação dos problemas do Brasil. Se a corrupção é uma cultura arraigada no cenário político nacional, o semear de uma contracultura terá o condão de mudá-la. A base dessa mudança é a educação para a cidadania e os direitos. Atalhos e aparos nos caminhos constitucionalmente estabelecidos não podem ser justificados pelas boas intenções de combate aos corruptos.
O combate à corrupção desborda em vilipêndio constitucional quando é feito ao arrepio de garantias constitucionais integrantes do estatuto de proteção dos direitos fundamentais e também do sistema internacional de proteção aos direitos humanos, do qual o Brasil é signatário. Essa tendência é reforçada pela tônica repressiva do idioma do direito penal como solucionador de todos os males. A crise relacionada ao necessário combate à corrupção também se manifesta na incerteza que dominou os debates no Supremo Tribunal Federal durante todo o ano.
Uma das questões colocadas, por exemplo, foi a revisão –que (ainda) não se concretizou– do precedente de outubro de 2016 sobre a possibilidade do início do cumprimento da pena a partir da decisão de segunda instância. Corrobora nessa linha arriscada o recentíssimo debate, já iniciado com formação de maioria, sobre o poder da Polícia Federal para celebrar acordos de delação.
A pauta de retrocessos nos direitos e garantias fundamentais, que ocupa as diversas instâncias, demonstra bem a crise dos direitos humanos que marcou o constitucionalismo em 2017. Além da crise de efetividade que mancha o projeto constitucional quase três décadas após sua entrada em vigor, movimentos conservadores ganharam considerável espaço nos legislativos com bandeiras e projetos que têm o objetivo de esvaziar e neutralizar o debate e o espaço público.
Encontrou óbices neste ano a promessa constitucional da igualdade substancial como política de reconhecimento de identidades –orientada pelos critérios de gênero, orientação sexual, idade, raça, etnia e outros atributos. Pautas de reconhecimentos que avançam no Judiciário –quanto aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e sua autonomia corporal, por exemplo– encontram contraponto em iniciativas legislativas como a PEC 181, que reduz as hipóteses legais já definidas para a realização do aborto.
A queda de força, ao invés dos diálogos, marcou 2017 nas relações entre Legislativo e Judiciário, como espelho da crise entre os poderes. Neste ponto há o exemplo emblemático da promulgação da Emenda Constitucional 96, que acrescenta o § 7º ao art. 225 da Constituição Federal, para permitir a realização das manifestações culturais registradas como patrimônio cultural brasileiro que não atentem contra o bem-estar animal.
O acréscimo constitucional vem em resposta ao julgamento realizado em outubro de 2016 pelo STF sobre a Adin 4.983. Por maioria apertada, naquela ocasião, o tribunal declarou inconstitucional lei do Ceará que regulamentava a prática da vaquejada.
A crise federativa também foi um problema evidente em 2017. A consolidação da concepção solidária da federação, estampada no projeto de federalismo cooperativo, começou a apontar no horizonte constitucional. Terminado em novembro, o julgamento da APDF 109, sobre tema de relevância extrema a respeito do uso do amianto, referencia o respeito e a efetividade do pluralismo do Estado que busca a otimização da cooperação entre os entes federados com vistas à maximização do conteúdo normativo dos direitos fundamentais. Este precedente ainda é um registro minoritário em um cenário centralizador dos poderes e competências.
Mas o ano também registrou avanços. No que toca à raça, o STF declarou constitucional a Lei 12.990/2014, que reserva a negros 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos no âmbito da administração pública federal direta e indireta. A superação do racismo estrutural e institucional e a necessidade de garantir a igualdade material, por meio do reconhecimento da população afrodescendente, foi um dos fundamentos principais da decisão.
No que toca às questões de gênero e de orientação sexual, destaque para os debates iniciados, mas ainda pendentes, a respeito da mudança de nome social sem realização da cirurgia de transgenitalização, sem nenhum voto em sentido contrário registrado até o momento e 5 votos favoráveis. A justificativa da maioria do STF é que discriminação sem base constitucional configura limitação indevida à liberdade e ao reconhecimento dos sujeitos e de seus direitos.
Desse rol acima exposto, que não possui qualquer pretensão exauriente, notam-se que são diversos os sentidos de crise que o constitucionalismo em 2017 assumiu; as crises, portanto. Ainda que reconhecida a pluralidade, emerge também ponto em comum: a hiperjudicialização de todas as dimensões constitucionais. Este superdimensionamento judicial, com destaque ao STF, contribuiu para este cenário de crise.
Retomar o sentido do poder constituinte, recolocar os sujeitos constitucionais em seus devidos lugares e estabelecer diálogos – e não enfrentamentos – entre as diferentes instâncias deliberativas em prol da Constituição passam a ser ainda mais fundamentais para superação dos dilemas do constitucionalismo presente, exacerbados em 2017.
A crise, todavia, não possui apenas efeitos negativos, pode ter um sentido tenso, porém, criativo e transformador de paradigmas, como queria Thomas Kuhn. Espera-se ser este o sentido prospectivo a prevalecer às vésperas do aniversário de 30 anos da Constituição. Que venham os desafios (constitucionais) de 2018!
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