segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

A boa morte anunciada

*Eudes Quintino de Oliveira Júnior

Machado de Assis, assim como outros escritores de sua época, tinha por costume relatar que as pessoas quando se cumprimentavam desejavam boa morte reciprocamente. Isto porque o bom dia, boa tarde e boa noite são votos ocasionais, por períodos, ao passo que a boa morte significava que, mesmo se as pessoas não mais se encontrassem, ficava antecipadamente expresso o desejo de uma morte boa e confortável, nos limites de sua realidade.

A convivência entre o homem e a morte remonta à história da própria humanidade. O nascer e o morrer são atos reiterados, vinculados, um compreende o outro, como o alfa e o ômega. A vida, por si só, é uma preparação para a morte. Ou se morre de forma repentina ou em razão de doença que se agrava e assume caráter de irreversibilidade. No primeiro caso, é claro, não há como dispensar qualquer tipo de cuidado à pessoa, preparando-a para o evento final. No segundo, porém, abre-se um campo enorme em razão da dignidade humana e do espírito cristão que habita cada um, principalmente diante de uma enfermidade incurável. O novo pensamento que se aflora não busca encontrar o homem imortal, como sugeriu Simone de Beauvoir em seu livro "Todos os homens são mortais", mas sim, mesmo com a ocorrência da senescência celular, aquele que viva com conteúdo, com qualidade e a intensidade necessária cada ciclo da vida.

A morte surge, desta forma, como tema central e até mesmo natural, apesar do homem resistir a travar discussão a respeito. O modo humano de morrer, percorrer o caminho da longa jornada e saber que a vida, apesar de frequentar todos os sentimentos humanos, é uma preparação para a morte. Mas o que se leva, não é a morte e sim, a vida. O anseio das pessoas é ter uma morte rápida, sem sofrimento e, logicamente, após ter exaurido a vida em sua intensidade. Sêneca, na antiguidade do Império Romano, já proclamava que morrer bem significa escapar vivo do risco de morrer doente.

Com o pensamento voltado para atender o homem em seu estertor, o Conselho Federal de Medicina editou a resolução 1995, de 9/8/12, que introduziu as diretivas antecipadas da vontade do paciente a respeito do tratamento que pretende receber ou não no momento em que se encontrar incapacitado para expressar sua vontade como, por exemplo, em estágio terminal em razão de doença irreversível. A vontade pode ser expressa por um documento, chamado Testamento Vital, permitindo-se até mesmo a nomeação de um procurador para tal fim. E, mesmo que haja colidência com os interesses familiares, deve prevalecer a vontade manifestada pelo testador e o médico deverá executá-la.

O Código de Ética Médica, em vigência desde o dia 13/4/10, no parágrafo único do artigo 41, aconselha a prática ortotanásica ao paciente em fase terminal, contraindicando todo esforço de ações diagnósticas e terapêuticas inúteis e recomenda a oferta de cuidados paliativos. Não se trata de um apressamento da morte, mas sim um cuidar cauteloso para conferir ao paciente a continuidade da sua dignidade. O estertor da morte é suavizado, de acordo com a intenção demonstrada pelo paciente no seu testamento.

Não se pode cogitar em omissão em não fornecer medicamentos para curar a moléstia e nem mesmo em suicídio assistido. Não se exige tão extremada conduta quando a medicina não reúne mais conhecimentos científicos e terapêuticos para combatê-la com sucesso. Suaviza-se, por outro lado, a dor e o sofrimento, com a oferta dos medicamentos apropriados. Assim, numa definição rápida, pode-se dizer que os cuidados paliativos são ações voltadas ao paciente que se encontra em estado irreversível de saúde, visando contemplá-lo com o conforto familiar, espiritual e tudo o mais que possa traduzir em sensação de bem-estar. Seria o tomar o paciente pelas mãos e com ele caminhar com segurança e lentamente até o umbral que interrompe o ciclo vital. É, portanto, uma tarefa especializada, que exige muito mais do que a solidariedade humana. Daí, muitas vezes, nem mesmo os parentes poderão executá-la a contento.

Assim, a vontade do paciente supera qualquer outra manifestação a respeito da assistência à terminalidade da sua vida. A autonomia da vontade integra os direitos da pessoa humana e, como tal, deve ser preservada quando optar pela prática ortotanásica. Tanto é que o doente pode sair de uma determinada instituição de saúde e ser encaminhado para um hospice dying ouaté mesmo sua própria casa, preferencialmente equipada com home care, para passar os últimos momentos de sua vida.

É uma conquista a ser dividida com o desenvolvimento das novas tecnologias médicas e com a evolução do pensamento do homem que, em razão de sua autonomia e determinação, pode estabelecer uma disciplina de final de vida compatível com sua moral ética, sem afrontar qualquer texto legal que normatiza em sentido contrário. É continuar viver, vivendo, seguir, seguindo a estrada até o seu final e, quando chegada a hora, fazer prevalecer a morte com a dignidade merecida. Como entoava Fernando Pessoa, a morte é a curva da estrada. Morrer é só não ser visto.
 
 

* promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, com doutorado e pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp - Centro Universitário do Norte Paulista.
  

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