LAURA CAPRIGLIONE
À esq., José Raimundo da Costa, o Moisés, morto pela ditadura após informações de Anselmo (ao microfone) |
No dia 7 de maio de 2008, a então ministra da Casa Civil do governo Lula, Dilma Rousseff, foi confrontada pelo senador José Agripino Maia (DEM-RN) em audiência no Senado. Para sugerir que ela mentia a respeito de um dossiê secreto sobre desafetos do petismo, produzido no seio do governo federal, Maia argumentou que a ministra, ex-guerrilheira, já havia faltado com a verdade antes, ao ser presa pela ditadura militar.
Dilma lembrou que tinha então 19 anos, ficou três anos na cadeia e foi "barbaramente" torturada. "Qualquer pessoa que ousar dizer a verdade para interrogadores compromete a vida de seus iguais, entrega pessoas para serem mortas", prosseguiu. "Eu me orgulho muito de ter mentido, porque mentir na tortura não é fácil. Agora, na democracia, se fala a verdade."
Vinte e seis anos após o fim da ditadura, quando o Brasil se prepara para instaurar sua Comissão da Verdade, destinada a apurar violações de direitos humanos cometidas pelo Estado naquele período, é revelador ler relatórios, detalhados e coloridos, em bom português e com estilo quase jornalístico, de alguém que resolveu (e orgulha-se disso) "falar a verdade" nos anos de chumbo.
A Folha teve acesso a quase uma centena de documentos daquele período sobre o ex-marinheiro José Anselmo dos Santos, o cabo Anselmo -vários escritos por ele mesmo-, que entrou para a história como o mais famoso dos "cachorros", como eram chamados os militantes de esquerda que passavam a atuar como espiões para os órgãos de segurança.
Os relatórios foram coligidos pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, entidade que tenta resgatar a memória do período de 1964 a 85, quando sucessivos governos militares assenhoraram-se do poder no Brasil. Saídos dos arquivos da repressão, de órgãos como o Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo (Dops) e os centros de informações do Exército (CIE) e da Marinha (Cenimar), são instantâneos dramáticos da história enquanto ela era escrita.
O CARA Bom de discurso, carismático, Anselmo foi "o cara" nos tempos irados que marcaram o fim do governo João Goulart (1961-64). Era então presidente da Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil. Depois, ainda envolto na aura mística de líder sindical de massas, virou guerrilheiro quando parte da esquerda nativa embarcou no sonho heavy metal de derrubar a ditadura pela via das armas. Preso, em 1971, Anselmo -que nunca chegou a cabo, mas recebeu a alcunha por um mal-entendido com suas insígnias militares- tornou-se um traidor.
Chegou a se vangloriar de ter fornecido à repressão informações que levaram à morte 200 militantes. Seguro é que as delações de Anselmo permitiram à polícia liquidar pelo menos 11 "inimigos do regime", entre os quais sua própria mulher, a "sensível", "loira", "esguia", "de olhos azuis", "simpática" e poeta (assim designada por ele mesmo, qual namorado apaixonado) Soledad Barrett Viedma, então com 28 anos, grávida de um filho seu, gestação de quatro meses.
Os documentos sobre ele, reunidos em pesquisa capitaneada pelo ex-guerrilheiro e ex-preso político Ivan Seixas, membro da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, estão repletos de descrições como essas, numa pilha de 20 centímetros de altura.
Todos produzidos em máquinas de escrever, nenhum manuscrito, vários papéis contêm o testemunho do próprio cabo Anselmo no ato da delação, ainda sem se preocupar com o acerto de contas com a história (hoje, aos 69 anos, Anselmo diz que lutava "para salvar o Brasil do comunismo"). Como método, o detalhe e a precisão.
NAMORADA O destinatário dos textos caprichosamente datilografados era o delegado Sérgio Paranhos Fleury (1933-79), do Dops de São Paulo, notório torturador de presos políticos, o mais bem-sucedido caçador de inimigos do regime -foi ele quem montou a operação que liquidou Carlos Marighella (1911-69), um dos principais ideólogos da luta armada.
A ele Anselmo entregou um relato biográfico sobre Soledad, codinome Lurdes del Sol, sua namorada, no texto com o sugestivo título de "Relatório de Paquera", de novembro-dezembro de 1971.
"Lurdes (del Sol) é filha de um chefão do PC paraguaio", ele escreveu. "Desde a infância fazia trabalhos de militância. Passou à Argentina, viveu no Uruguai e depois, por volta de 1965/66, viajou a Moscou, onde cursou marxismo-leninismo como bolsista da Universidade Patrice Lumumba. Enjoou dos russos, separou-se do pai, que, segundo disse, colocou a polícia em sua pista por militar na Argentina e ser contrária à linha do Partido a que ele pertencia."
Anselmo contou ainda que, em 1967, a moça encontrou os cinco irmãos, "na Alemanha ou na Argentina", e eles lhe propuseram que fossem juntos a Cuba treinar guerrilhas. Lá, ela conheceu o brasileiro José Maria Ferreira de Araújo, o Ariboia, também militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).
"Casaram-se, enfrentando todas as pressões cubanas em contrário. Cada irmão pertence a uma das facções do PC paraguaio. E ela agora é uma simpática aventureira, ligada emocionalmente à VPR. Seu fim: servir à 'Revolução'. 'Revolução' indefinida, contra o imperialismo ianque e soviético, contra Cuba, contra os PCs tradicionais, ao lado das guerrilhas. Anarquismo total para o mês que vem."
Segue o relato de Anselmo para Fleury: "Lurdes está treinada para o trabalho de cidade, conhece explosivos e fala português, russo e espanhol, além de guarani. É loura, esguia, olhos azuis, aproximadamente 1,80 m. Escreve poesias revolucionárias que nunca publicou. É extremamente sensível. Estou muito ligado afetivamente a ela. Mais, no entanto, prezo o que estou reconquistando. Caso seja possível, caso seja possível desejar, que sua solução final fosse a expulsão do Brasil, ou pelo menos, não fosse extrema".
O que estava "reconquistando" o traidor que não sabia nem se tinha direito a desejar algo? Ele não diz. Fleury massacraria Soledad dois anos depois, em emboscada armada pelo próprio Anselmo na cidade de Paulista (PE), na qual foram mortos seis membros da VPR.
CONFIDENCIAL Anselmo ensinou à repressão tudo o que havia aprendido em Cuba, transformada na época em polo exportador de revolução. Provém dele boa parte das informações contidas no relatório do Centro de Informações do Exército de 13 de novembro de 1973, em que se arrolam os nomes de 204 esquerdistas que fizeram cursos de guerrilha na ilha de Fidel Castro.
O "relatório confidencial" distribuído aos departamentos da repressão parece à primeira vista a lista de matrícula de uma faculdade. Linha por linha, lê-se o nome real de cada militante, os codinomes que usava, as organizações a que era ligado, os cursos que fez em Cuba. Esses podiam ser de armamento, fotografia, imprensa, enfermagem, inteligência, instruções revolucionárias, explosivos.
Constam entre os "alunos" dessa "Universidade da Guerrilha", segundo o CIE, o hoje militante do PV Fernando Gabeira, o petista Carlos Minc e os ex-ministros José Dirceu e Franklin Martins.
Anselmo escreve a Fleury que foi enviado a Cuba por uma organização criada por Leonel Brizola no seu exílio uruguaio, o MNR ou Morena (Movimento Revolucionário Nacionalista, às vezes apresentado como Movimento Nacionalista Revolucionário), para "aprender as táticas de guerrilha". Brizola levou a sério (por pouco tempo, é verdade) a hipótese de uma reação armada à ditadura militar.
Em outro relatório para a polícia, sem nome ou data, Anselmo contou como fez a viagem a Cuba, em típico enredo de livro de espionagem (gênero literário pelo qual, aliás, ele confessa sua admiração). "Em fevereiro de 1967, após receber um passaporte e os necessários meios financeiros, roteiro de viagem, o dia e a companhia aérea que devia usar, [com Evaldo, ex-marinheiro] segui de navio para a Argentina. [Lá], compramos passagem pela Air France para Paris, onde nos esperava Max da Costa Santos, que nos orientou a viajar para a Tchecoslováquia. Devolvemos os passaportes e viajamos pela companhia Cubana de Aviación para Cuba com papéis que nos foram dados pela embaixada cubana."
Sobre a experiência em Cuba, onde permaneceu até setembro de 1970, Anselmo relata: "Instrutores militares ensinaram-nos a atirar, limpar armas e tática guerrilheira, práticas de defesa de acampamentos, confecção de armadilhas, trabalho com explosivos, confecção de minas, identificação de sons, cálculo de distâncias, orientação, codificação de mensagens".
Ele aprendeu ainda a escrever com tinta invisível (com urina, no verso de cartas falsas: bastava expor a mensagem a uma fonte de calor, como um ferro elétrico ou uma lâmpada, e a urina escurecia, permitindo a visualização do recado secreto), a enviar textos em fotogramas de filmes analógicos não revelados (se o militante fosse pego, bastaria abrir o filme; a exposição ao sol apagaria a mensagem) e a programar pontos de encontro entre militantes com senhas e contrassenhas, de modo a lhes garantir a segurança.
Rotina dura, segundo Anselmo. "Recebemos fardamento, armas e mochilas do Exército cubano e fomos levados à região central de Las Villas, para três meses de treinamento de guerrilha. Além dos brasileiros, havia no grupo cinco uruguaios. Depois da primeira semana, começaram as desistências por enfermidade, indisciplina (com os pés rachados, alguns se recusaram a caminhar). Foram separados. Ficariam num quartel até que os cubanos e as organizações que os haviam mandado ali decidissem o que fazer."
'RECESSO' Segundo o relatório, a intensidade do treinamento e a rigidez dos instrutores fizeram com que se deteriorasse a "unidade do grupo". "Só restava um uruguaio. Entre os brasileiros havia desistências. Em outubro [de 1967], soubemos da queda de Che Guevara. O treinamento entrou em franco recesso. Não havia mais o interesse anterior. [...] Pouco depois, entrei em choque com o encarregado do treinamento. Fui isolado num quartel até fins de janeiro."
Houve mais problemas entre Anselmo e os cubanos. Ele diz que pediu para trabalhar e estudar. "Não nos foi permitido, não tínhamos nenhum documento e nem por iniciativa própria poderíamos fazer alguma coisa para sair da condição de parasitas."
Em setembro de 1970, finalmente, Anselmo conseguiu voltar ao Brasil. "Trazia uma mensagem cifrada de apresentação para Carlos Lamarca [dirigente máximo da VPR, que havia desertado do Exército em 1969], e ele deveria dar-me tarefas para desempenhar, explicar o funcionamento da organização. Trazia também filmes com esquemas para a construção de armas. Depois de Praga, deveria seguir para Milão, Itália. De Milão para Genebra, onde compraria uma passagem no voo da Swissair até São Paulo."
Anselmo, que também usava os codinomes Augusto, Daniel, Paulo, Renato e Sérgio, entre outros, foi preso menos de um ano depois, justamente quando as organizações de esquerda acumulavam uma sucessão de baixas em seus quadros. Para continuar o assédio contra o governo militar, começaram a trazer de volta militantes que estavam fora do país, como banidos ou exilados -a maior parte proveniente do Chile ou de Cuba.
A resposta da repressão foi condenar à morte, extrajudicialmente, quem voltava. Segundo o jornalista Elio Gaspari, em "A Ditadura Escancarada" (Companhia das Letras, 2002), "a sentença de morte contra os banidos autodocumenta-se. Entre 1971 e 1973, foram capturados dez. Nenhum sobreviveu".
Anselmo revelou ao delegado Fleury as senhas que os militantes da VPR que voltavam ao Brasil usariam para apresentar-se e incorporar-se a sua organização.
"Em Recife, a partir de janeiro: Restaurante Maxim, praia do Pina, todas as sextas-feiras, às 11h. O que recebe estará na varanda, apoiando-se com o punho fechado numa das colunas de sustentação, olhando o mar. Quem entra pergunta: 'Será que tem galinha ao molho pardo hoje?' A contrassenha do que recebe será: 'Tem peixada'". Bastava à polícia, de posse das senhas e contrassenhas, comparecer ao ponto de encontro, para fazer a colheita de informações.
JUDAS Se encarnou o Judas da esquerda brasileira, Anselmo foi só o mais notório a mudar de lado. Segundo Ivan Seixas, da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, são conhecidas as identidades de 26 "cachorros". "Quem fez esse tipo de acordo não tem caminho de volta. Já fez o inaceitável. O problema é conseguir se olhar no espelho. A maior parte deles se tornou alcoólatra", diz.
Os "cachorros" representavam uma ferida de morte num princípio básico da luta guerrilheira: a absoluta confiança que deveria existir entre seus membros. No "Minimanual do Guerrilheiro Urbano", escrito por Carlos Marighella em junho de 1969, espécie de bíblia dos grupos da luta armada, lê-se: "O pior inimigo da guerrilha e o maior perigo que corremos é a infiltração em nossa organização de um espião ou um informante. O espião apreendido dentro de nossa organização será castigado com a morte. O mesmo vale para o que deserta e informa a polícia".
Já no final de 1971, Anselmo avisava à equipe de Fleury de que sua atividade como espião havia sido descoberta: "Num informe chegado do Rio, constava, com todas as letras: 'O cabo Anselmo se entregou à repressão'". Quem passou a informação foi uma militante, Olga (Inês Etienne Romeu, dirigente da VPR), que, presa, ouviu dois agentes comentando o assunto.
Torturada, estuprada, "quase morta de pancada" segundo o próprio "cachorro", Olga foi enviada a um hospital. De lá, conseguiu mandar a mensagem da traição de Anselmo ao comando da sua organização. Mas o comandante da VPR no Chile, Onofre Pinto, de origem militar como Anselmo, não lhe deu ouvidos.
No longo período em que atuou como infiltrado, Anselmo chegou a fazer viagens internacionais para encontrar Onofre Pinto, para recolher fundos que financiassem as ações armadas e, enfim, conhecer detalhes da organização no Chile. Na época, o Chile era uma espécie de Meca da esquerda, governada pelo socialista Salvador Allende, depois deposto por Augusto Pinochet. Mesmo relativamente livre, leve e solto, Anselmo nunca tentou desaparecer, fugir de seu papel de delator.
"Sem Anselmo e outros tantos informantes, os comunistas teriam tomado o poder. Ele traiu os companheiros, mas não traiu a pátria", costuma dizer o policial Carlos Alberto Augusto, 68, o Carlinhos Metralha, assim denominado porque, mesmo no Dops, onde trabalhava, andava sempre com uma metralhadora pendurada no ombro.
'A FONTE' Em 8 de janeiro de 1973, na mesma ação em que foi assassinada Soledad, morreram os militantes Pauline Reichstul, Eudaldo Gomes da Silva, Jarbas Pereira Marques, José Manoel da Silva e Evaldo Luiz Ferreira.
Relatórios dos ministérios da Marinha e da Aeronáutica atestam que os seis foram mortos "ao reagir a tiros à ordem de prisão dada pelos agentes de segurança", a explicação padrão até hoje usada em casos de execução. Anselmo diz que não participou diretamente do massacre porque já tinha sido retirado da área por Augusto.
Seis meses depois, o Dops distribuiu para toda a chamada "Comunidade de Informações" o informe 25-B/73, assinado por "A Fonte". Assunto: a situação no Chile. Como prova de que a atividade de alcaguete continuava firme e forte, era o relatório de um infiltrado da polícia que participou do "Tribunal Revolucionário" realizado em Santiago, Chile, para julgar o cabo Anselmo e Fleury, entre outros.
"O resultado do julgamento do Tribunal Revolucionário, que reuniu ALN, PCBR, VAR-Palmares, VPR e MR-8 [siglas de organizações da esquerda armada], foi a condenação à morte do delegado Fleury e do ex-cabo Anselmo", contou o informante.
A VPR, principal acusadora no "tribunal", leu um informe em que chamava Anselmo de "traidor da luta popular a serviço da ditadura fascista". Segundo o infiltrado, a VPR afirmava que o cabo "foi preso em São Paulo em junho de 1971 e a partir daí renegou todo o seu passado de lutas e começou a prestar serviços para a ditadura".
Era tarde demais. Sem braços, sem organização, sem armas, sem dinheiro, os grupamentos armados não conseguiram levar a cabo as execuções. Fleury morreu em 1979, em episódio mal explicado -por suposto afogamento, e o corpo foi sepultado sem ter sido necropsiado-, mas nunca reivindicado por qualquer grupo daqueles.
Anselmo, bem, depois de mudar de rosto em uma cirurgia plástica realizada numa madrugada de 1973 no hospital Albert Einstein, reapareceu aqui e ali, em poucas e ruidosas entrevistas, a última das quais ao programa "Roda Viva" da TV Cultura, em 17 de outubro.
Ele reclama da solidão e do não reconhecimento, por parte da história, de seus serviços. Que fazer? Ainda que agrade a traição, ao traidor tem-se aversão, sabe-se. "Até dentro da comunidade de informações, eu percebia, você percebe, né?, que algumas pessoas [me] desprezavam: 'Pô, esse filho da mãe aí traiu todo mundo, entregou tudo, vira-casaca', ou coisa parecida", disse Anselmo ao repórter Percival de Souza, em relato reproduzido no livro "Eu, Cabo Anselmo" (Globo, 1999). "Arrependimento? Não tenho. Absolutamente, nenhum", repete sempre.
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