sábado, 4 de janeiro de 2014

Razões éticas para roubar

A revolução mais importante dos tempos modernos foi a francesa. A tomada do poder pela burguesia rompeu em definitivo com as bases do poder medieval, assentado no clero e na nobreza. Clero é superstição com verniz explicativo do mundo, ou seja, é crendice religiosa. Nobreza é tradição e subserviência, quer dizer, um modo de ver a organização social que justifica hierarquia entre humanos. O clero e nobreza convenciam a massa de ignorantes que eram poder por vontade de uma boa invenção chamada deus, e transcorreram séculos até que fossem derrotados.

Ainda resta religião e não falta hierarquia entre humanos. Se já não reconhecemos superioridade de nascimento, valorizamos uma ordem de prioridade em que quem tem dinheiro vive com privilégios. Estupidamente, aceitamos uma forma de convivência em que ricos têm vantagens e, pior, transmitem essas vantagens a herdeiros. Filhos de ricos herdam do mesmo modo que filhos de nobres herdavam: tão só por terem nascido. Isso, é claro, é um absurdo sem fundamento na natureza ou em argumentos éticos, mas está aí, vigora, e mesmo os deserdados defendem que haja herança.

Assim é porque a burguesia que tomou o poder em 1789 não cumpriu a vontade de Jean Meslier (atribuída a Diderot ou a Voltaire): “Eu gostaria, e este será o último e o mais ardente dos meus desejos, eu gostaria que o último rei fosse estrangulado com as tripas do último padre”. De fato, na disposição da vida em comum restam padres e reis e ideias de padres e reis. Os iluministas estavam convencidos de que educariam a população a ponto de levá-la ao desprezo das tolices. Laboraram sem êxito. Não obstante avanços, o futuro veio emprenhado da mentalidade do passado.

O pensamento marxista (que deu base teórica à Revolução Russa de 1917) compreendeu isso: quem detém certos espaços de poder consegue produzir e reproduzir o modo de pensar geral da sociedade, e, aí, o conjunto das pessoas vê o que está estabelecido como o que deve estar estabelecido. Crendices e tradições, pois, continuariam a se repetir, a não ser que se revolucionasse essa situação. Revoluções, então, seriam necessárias para que a História avançasse, dado que o sistema burguês de eleição sempre elegeria os mesmos para fazer a mesma coisa.

Em tese, é certo: se não se interrompe um estado de coisas que se perpetua, ele continuará. Mas, quem decide sobre a revolução e a nova ordem? Quem será o titular do reordenamento das coisas? Bem, aí entram as tentativas de certas esquerdas, umas mais românticas, outras mais pragmáticas, mas todas nascidas de pequenos grupos, sem legitimação da sociedade. E como esses grupos se haviam por legitimados? Ora, eles se criavam a si mesmos como portadores de uma ciência dialética, como titulares dos métodos e meios da “revolução”.

Em alguns lugares galgaram o poder. No Brasil, não. Aqui, João Goulart governava e buscava avanços sociais por meio das chamadas reformas de base. Aí, veio a Ditadura. Violência, assassinatos. Luta por democracia. No meio desse caldo de terror e esforços libertários nascem e se organizam inúmeros grupos de esquerda, todos se atribuindo a condução futura do País, e cada um fazendo o que lhe parecia mais apropriado para deflagrar a “sua” revolução. Tudo sem qualquer sucesso, e a Ditadura usou essas organizações como pretexto para endurecer o regime já brutal.

Retomado o curso democrático, um partido oriundo de grupos de esquerda chegou à Presidência. Que fazer? A organização institucional brasileira é burguesa. Não havia “condições materiais” para uma revolução. Entretanto existia um fato sócio-histórico “dialeticamente” aproveitável: o País é corrupto. Então, roubou-se “eticamente” o cofre público, para comprar legisladores que apoiariam a “vontade revolucionária” no governo. Foi uma boa e prática ideia. Mas um deputado, querendo mais do que valia, não atendido, falou o que sabia. Deu tudo numa coisa chamada mensalão.
 
- crônica de Léo Rosas, transcrita do site atualidades do direito

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