Quem pensa diferente de mim não é meu inimigo, não é meu adversário. É meu parceiro na construção de um mundo plural.
Ministro Roberto Barroso
Ministro Roberto Barroso
O Primeiro e bom motivo tange ao desempenho do ministro Luís Roberto Barroso. Independentemente de se concordar ou não com as suas teses sobre a dosimetria das penas dos réus da AP 470, Barroso fez o que se espera de um membro da mais alta corte de justiça do país: comportou-se como um juiz. Demonstrou coragem, ao apresentar um voto que contraria as expectativas da opinião publicada. Demonstrou conhecimento e preparo, ao fundamentar bem o seu voto e ao apresentá-lo com sua habitual clareza. Demonstrou equilíbrio e racionalidade, ao procurar sopesar a vontade legítima de punir delitos com a necessidade de garantir direitos fundamentais. E, last but no least, Barroso demonstrou algo que se espera não apenas de juízes, mas de todo cidadão: respeito à opinião discordante e civilidade no debate.
Já o segundo e mau motivo diz respeito à performance sofrível e midiática do presidente Barbosa. Seguindo um tenebroso e assustador enredo repetido ad nauseam, Barbosa interrompeu rudemente Barroso por diversas vezes, tentando impedi-lo de falar e de concluir seu raciocínio.
Tal atitude poderia ser classificada como mero déficit de boa educação, mas Barbosa fez bem mais que isso. Ele acusou o ministro Barroso de proferir um voto político, sem nenhum fundamento técnico, insinuando, inclusive, que havia alguma motivação inconfessável por trás da discordância.
Trata-se do velho argumento ad hominem. Em vez de procurar rebater racionalmente os argumentos apresentados, acusa-se a pessoa que os profere. Desse modo, interdita-se um real debate sobre qualquer assunto. A discordância, nesse caso, é vista como um sinal inequívoco de falha moral, ou coisa pior. No mundo maniqueísta e simplório em que vivem os “barbosas”, só há lugar para certezas monolíticas construídas pelos homens, em tese, “de bem”. Os que se atrevem a discordar são pessoas, no mínimo, mal-intencionadas. Esse comportamento pode ser tudo, menos civilizado. Assim, o presidente Barbosa demonstrou, como bem afirmou Barroso, ter um preocupante déficit civilizatório.
Entretanto, Barbosa foi além. Terminada a votação, na qual a sua posição foi derrotada, Barbosa se julgou no direito de acusar a corte que preside de formar uma “maioria de ocasião”, para reverter, por interesses inconfessáveis, o “belíssimo trabalho” que o STF havia feito anteriormente. Barbosa chegou a lançar uma “advertência à sociedade”, de que a votação havia sido apenas um “primeiro passo” para coisas piores.
Ora, tal discurso não é apropriado ao presidente do STF. Tal discurso não é apropriado sequer ao mais humilde juiz de comarca. Esse tipo de discurso se espera apenas de sôfregos candidatos à procura de votos fáceis. Ao contrário de Barroso, que se comportou como juiz, Barbosa se comportou, no episódio, como reles demagogo.
Confesso que fiquei estupefato. Por alguns momentos, pensei ter escutado mal. Mas era isso mesmo: o presidente do STF acusou o seu próprio colegiado, ou a sua maioria, de estar agindo segundo interesses ilegítimos e escusos. Sinceramente, não lembro de precedente deste tipo no STF. Também não tenho conhecimento de uma acusação tão ensandecida e grosseira, vinda do próprio presidente, em outras cortes de justiça do mundo. Pode até ser que tenha existido, mas, com certeza, terá provocado grande escândalo. Fosse Barbosa presidente da Suprema Corte dos EUA, já estaria na rua. Seria o primeiro impeachment da história da corte norte-americana.
Essa acusação estapafúrdia de Barbosa demonstra a existência de outro déficit, o déficit democrático. Com efeito, Barbosa e os que pensam como ele não parecem entender o papel de uma corte suprema de justiça, e o papel de seu presidente, num regime democrático.
Há uma razão pela qual a maioria das supremas cortes de justiça tem juízes nomeados (não eleitos diretamente) e com um mandato vitalício ou com término numa idade avançada. É que esse modelo procura, sobretudo, assegurar aos juízes a autonomia necessária para poderem votar livremente, de acordo com suas consciências, independentemente do governo de plantão e, mais ainda, das ocasionais maiorias políticas.
Obviamente, algumas vezes isso acarreta conflitos. Alexander Bickel, conhecido scholar conservador norte-americano, chegou a escrever, nos anos da década 1960, que a Suprema Corte dos EUA era uma “instituição desviante na democracia norte-americana”, já que suas decisões frequentemente exerciam um controle constitucional das leis “não a favor da maioria prevalecente, mas contra ela”. Bickel cunhou o conceito de counter-majoritarian difficulty ou counter-majoritarian dilemma (dilema contramajoritário) para denotar essa suposta contradição entre as decisões de juízes nomeados que iam de encontro a leis aprovadas por autoridades eleitas ou ao que pensavam as maiorias.
Bickel, um conservador, se ressentia das decisões da Warren Court, o período em que a Suprema Corte foi presidida pelo juiz Earl Warren. Nesse período, a Suprema Corte, numa série de julgamentos históricos, acabou, entre muitas outras coisas, com a segregação racial nas escolas e com a obrigação de rezar em alguns sistemas educacionais. Saliente-se que tudo isso estava previsto em leis estaduais. Mais: a opinião pública (a opinião pública branca) desses estados apoiava maciçamente essas práticas. A Warren Court preferiu, no entanto, defender o direito das minorias e seu entendimento da Constituição dos EUA e da Bill of Rights, independentemente da opinião pública majoritária.
Com isso, a Warren Court construiu o capítulo mais rico e belo da Suprema Corte dos EUA. Um capítulo construído, até certo ponto, contra a opinião da maioria, contra a opinião prevalecente na sociedade. Um capítulo que afirma a primazia dos valores perenes da constituição e a independência dos juízes, em detrimento das maiorias políticas que são, essas sim, sempre “de ocasião”.
Agora bem, quando Barbosa incita a “sociedade” e a opinião publicada contra a própria corte que preside, ele faz exatamente o contrário: procura submeter as decisões da corte ao que ele considera ser a tendência política majoritária.
É um capítulo pobre e feio do nosso STF. Um capítulo que, por procurar submeter a corte à maioria, ou suposta maioria, é paradoxalmente antidemocrático.
A Warren Court contribuiu para construir o mundo mais plural ao qual Barroso se refere na epígrafe. Já a Corte Barbosa não parece ser um parceiro democrático para a construção de um Brasil melhor.
Já o segundo e mau motivo diz respeito à performance sofrível e midiática do presidente Barbosa. Seguindo um tenebroso e assustador enredo repetido ad nauseam, Barbosa interrompeu rudemente Barroso por diversas vezes, tentando impedi-lo de falar e de concluir seu raciocínio.
Tal atitude poderia ser classificada como mero déficit de boa educação, mas Barbosa fez bem mais que isso. Ele acusou o ministro Barroso de proferir um voto político, sem nenhum fundamento técnico, insinuando, inclusive, que havia alguma motivação inconfessável por trás da discordância.
Trata-se do velho argumento ad hominem. Em vez de procurar rebater racionalmente os argumentos apresentados, acusa-se a pessoa que os profere. Desse modo, interdita-se um real debate sobre qualquer assunto. A discordância, nesse caso, é vista como um sinal inequívoco de falha moral, ou coisa pior. No mundo maniqueísta e simplório em que vivem os “barbosas”, só há lugar para certezas monolíticas construídas pelos homens, em tese, “de bem”. Os que se atrevem a discordar são pessoas, no mínimo, mal-intencionadas. Esse comportamento pode ser tudo, menos civilizado. Assim, o presidente Barbosa demonstrou, como bem afirmou Barroso, ter um preocupante déficit civilizatório.
Entretanto, Barbosa foi além. Terminada a votação, na qual a sua posição foi derrotada, Barbosa se julgou no direito de acusar a corte que preside de formar uma “maioria de ocasião”, para reverter, por interesses inconfessáveis, o “belíssimo trabalho” que o STF havia feito anteriormente. Barbosa chegou a lançar uma “advertência à sociedade”, de que a votação havia sido apenas um “primeiro passo” para coisas piores.
Ora, tal discurso não é apropriado ao presidente do STF. Tal discurso não é apropriado sequer ao mais humilde juiz de comarca. Esse tipo de discurso se espera apenas de sôfregos candidatos à procura de votos fáceis. Ao contrário de Barroso, que se comportou como juiz, Barbosa se comportou, no episódio, como reles demagogo.
Confesso que fiquei estupefato. Por alguns momentos, pensei ter escutado mal. Mas era isso mesmo: o presidente do STF acusou o seu próprio colegiado, ou a sua maioria, de estar agindo segundo interesses ilegítimos e escusos. Sinceramente, não lembro de precedente deste tipo no STF. Também não tenho conhecimento de uma acusação tão ensandecida e grosseira, vinda do próprio presidente, em outras cortes de justiça do mundo. Pode até ser que tenha existido, mas, com certeza, terá provocado grande escândalo. Fosse Barbosa presidente da Suprema Corte dos EUA, já estaria na rua. Seria o primeiro impeachment da história da corte norte-americana.
Essa acusação estapafúrdia de Barbosa demonstra a existência de outro déficit, o déficit democrático. Com efeito, Barbosa e os que pensam como ele não parecem entender o papel de uma corte suprema de justiça, e o papel de seu presidente, num regime democrático.
Há uma razão pela qual a maioria das supremas cortes de justiça tem juízes nomeados (não eleitos diretamente) e com um mandato vitalício ou com término numa idade avançada. É que esse modelo procura, sobretudo, assegurar aos juízes a autonomia necessária para poderem votar livremente, de acordo com suas consciências, independentemente do governo de plantão e, mais ainda, das ocasionais maiorias políticas.
Obviamente, algumas vezes isso acarreta conflitos. Alexander Bickel, conhecido scholar conservador norte-americano, chegou a escrever, nos anos da década 1960, que a Suprema Corte dos EUA era uma “instituição desviante na democracia norte-americana”, já que suas decisões frequentemente exerciam um controle constitucional das leis “não a favor da maioria prevalecente, mas contra ela”. Bickel cunhou o conceito de counter-majoritarian difficulty ou counter-majoritarian dilemma (dilema contramajoritário) para denotar essa suposta contradição entre as decisões de juízes nomeados que iam de encontro a leis aprovadas por autoridades eleitas ou ao que pensavam as maiorias.
Bickel, um conservador, se ressentia das decisões da Warren Court, o período em que a Suprema Corte foi presidida pelo juiz Earl Warren. Nesse período, a Suprema Corte, numa série de julgamentos históricos, acabou, entre muitas outras coisas, com a segregação racial nas escolas e com a obrigação de rezar em alguns sistemas educacionais. Saliente-se que tudo isso estava previsto em leis estaduais. Mais: a opinião pública (a opinião pública branca) desses estados apoiava maciçamente essas práticas. A Warren Court preferiu, no entanto, defender o direito das minorias e seu entendimento da Constituição dos EUA e da Bill of Rights, independentemente da opinião pública majoritária.
Com isso, a Warren Court construiu o capítulo mais rico e belo da Suprema Corte dos EUA. Um capítulo construído, até certo ponto, contra a opinião da maioria, contra a opinião prevalecente na sociedade. Um capítulo que afirma a primazia dos valores perenes da constituição e a independência dos juízes, em detrimento das maiorias políticas que são, essas sim, sempre “de ocasião”.
Agora bem, quando Barbosa incita a “sociedade” e a opinião publicada contra a própria corte que preside, ele faz exatamente o contrário: procura submeter as decisões da corte ao que ele considera ser a tendência política majoritária.
É um capítulo pobre e feio do nosso STF. Um capítulo que, por procurar submeter a corte à maioria, ou suposta maioria, é paradoxalmente antidemocrático.
A Warren Court contribuiu para construir o mundo mais plural ao qual Barroso se refere na epígrafe. Já a Corte Barbosa não parece ser um parceiro democrático para a construção de um Brasil melhor.
- Transcrito da coluna de Paulo Moreira Leite - Isto É, on line
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