quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Os domínios da drogalândia

Gaudêncio Torquato
Jornal do Brasil


À primeira vista, a repressão aos consumidores e vendedores de drogas na região central de São Paulo, conhecida como Cracolândia, se resume à questão: adotar o método da "tolerância zero", praticado pelos Estados Unidos e que consiste na retirada forçada das ruas de dependentes e traficantes, ou implantar o sistema europeu, usado por países como França, Espanha e Holanda, permissivo e que comporta até um padrão de consumo de drogas considerado não tão prejudicial? A par das evidências de que a ação policial pecou pela ausência de articulação entre as instâncias federal, estadual e municipal, escancara-se a hipótese de que a pirotecnia, que agradou aos moradores das regiões invadidas, se assemelha à prática de enxugar gelo. Os viciados tentarão conseguir a droga noutras regiões, ajudando criminosos do narcotráfico a conquistar novos territórios. Enquanto houver demanda, haverá oferta. E a experiência tem demonstrado que a abstinência forçada da droga não tem diminuído o contingente de viciados. Nos Estados Unidos, apenas 30% dos dependentes conseguem abandonar o vício.

O affaire paulistano sinaliza a necessidade de o país substituir medidas improvisadas por consistentes programas de prevenção e reinserção social, coisa que se faz absolutamente premente ante esse dado estarrecedor: o crack pode ser encontrado em 98,7% dos municípios brasileiros. A cada ano, expande-se a estética da degradação que acolhe os usuários em praticamente todas as regiões do país. Ao contrário do que se supõe, o balão das drogas infla mesmo sob pressão de programas desenvolvidos por uma pletora de órgãos, fóruns, entidades e movimentos espalhados pelo território. O tráfico não dá sinais de que reflui. Não se trata, porém, de uma característica brasileira. Redes governamentais, agências e organizações internacionais que atuam na vanguarda e na retaguarda das batalhas contra as drogas não têm conseguido sustar as redes de corrupção e os pólos de irradiação do narcotráfico, controlados por financiadores, transportadores e agentes que comerciam um dos negócios mais rentáveis do planeta. Infelizmente, o Brasil tornou-se espaço estratégico do esquema. Desde o início dos anos 90, quando os Estados Unidos passaram a controlar a região do Caribe, o país foi escolhido pelos cartéis para ser, inicialmente, rota de trânsito, ao lado da Europa oriental, a zona ao sul e ao leste do mediterrâneo, o México e países africanos. Depois, ganhou a posição de entreposto para estocagem, produtor de drogas (incluindo centros de processamento de folhas de coca e laboratórios para refino de cocaína) e plataforma de exportação.

Esta é a explicação para o fato de que, por estas plagas, a indústria da droga cresce em progressão geométrica enquanto o aparato de combate caminha em progressão aritmética. O Brasil já ocupa o segundo lugar no ranking mundial de lavagem de dinheiro apurado do narcotráfico na América do Sul. A questão, portanto, é muito mais grave do que a leitura que se extrai da polêmica sobre as cracolândias do arquipélago nacional. Os pólos de consumo de drogas integram um gigantesco empreendimento internacional, cujas conexões envolvem sistemas bancários (nacionais e internacionais), empresas farmacêuticas, meios de transporte intermodais, estruturas de Estado, organizações políticas e partidárias, forças policiais, subindo ao sagrado altar do Judiciário. Pode parecer exagero. Estudiosa da matéria, Lia Osório Machado, em documento sobre "o comércio ilícito de drogas e a geografia da integração financeira: uma simbiose?", mostra que parcela ponderável do PIB mundial deriva do comércio ilegal de drogas. O lucro do crime transnacional é da ordem de US$ 1 trilhão, dos quais parcela considerável (podendo chegar a US$ 500 bilhões) é processada pelo sistema bancário mundial após a "limpeza" nas lavanderias de dinheiro. Aliás, o combate à lavagem de dinheiro é o centro do combate ao narcotráfico, a partir dos EUA.

Não é admirar que esse portentoso empreendimento, que cria um Estado informal dentro do Estado formal, seja capaz de alterar a fisionomia geográfica e populacional de países, contribuindo para a expansão de cidades médias, alterando o mapa da distribuição de habitantes por meio de fluxos migratórios e influindo na condução dos poderes locais e regionais. Parte dos lucros é estocada em bancos subterrâneos seja para financiar programas sociais seja para alavancar obras de infraestrutura, e outros recursos são destinados ao financiamento de guerras e movimentos de terror. Os domínios da drogalândia são tão largos que se chega a apontar, em certos territórios, a participação de narco-divisas no incremento de reservas cambiais, contribuindo para ajustar políticas monetárias, bancárias e financeiras de governos periféricos. Insira-se essa engrenagem na moldura das economias transnacionais, adicione-se nela a paisagem dos "paraísos fiscais" e, assim, chega-se facilmente à conclusão de que um espaço continental como o Brasil, com 16,8 mil quilômetros de fronteiras (7 mil de fronteiras secas e 9,8 mil de fronteiras de rios), constitui alvo central para o império da droga. Sob esse formato, nosso mapa ultrapassa a geografia sulamericana, conectando-se a superfícies intercontinentais. Com essa preocupação, o governo brasileiro determinou prioridade ao Plano Estratégico de Fronteiras que, em 6 meses, apreendeu cerca de 115 toneladas de maconha e cocaína.

Ter controle sobre o território - eis a condição sine qua para o Brasil armar sua política de combate às drogas. Outros verbos são fundamentais nesse processo: coordenar, integrar, flexibilizar, harmonizar, agilizar. Das funções que deles se extraem, dependerá a eficácia das ações. Claro, os programas devem fluir harmoniosos e bem articulados entre as instâncias federal, estadual e municipal. Só assim serão capazes de evitar o espetáculo pirotécnico que se viu na Cracolândia paulistana.

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