Willian Vieira
Há cerca de um mês, a notícia de que o
apocalíptico fim do jumento nordestino estaria próximo se espalhou pelo Rio
Grande do Norte. Os chineses chegavam para levar os burros embora. Pior: os
burros é que estavam prontos para deixar a terra natal e navegar até as mesas
dos famintos chineses, já a salivar pela carne do bicho que fora um dia o
símbolo do trabalho no Nordeste brasileiro. Explica-se: por enquanto, os burros
não vão a lugar algum. Um mero protocolo de intenção foi assinado, no ano
passado, entre a secretaria de agricultura do estado e uma empresa chinesa,
para exportar 300 mil “unidades”. Mas foi só há poucos dias, quando o fato
vazou, que a questão asinina passou a dividir a opinião da população potiguar,
devolvendo ao jegue – então acostumado a ser apontado como problema e relegado,
coitado, ao vácuo simbólico deixado pela mudança econômica – o status
genuinamente nordestino.
De fato, quando os chineses buscaram no
Nordeste uma fonte perene de carne asinina, o jegue já estava fora de moda. Com
a venda de motocicletas em alta graças a macias prestações, a maioria das
famílias que usava o bicho para transporte (de gente ou de carga) trocou a
alfafa pela gasolina e montou na garupa da modernidade. Quatro patas não batem
duas rodas, que não empacam e bem menos incomodam, diria o repentista. A moto
não urra nem estaca (ao menos não por teimosia), não evacua no caminho nem fica
doente – nada que não se possa consertar com graxa e jeitinho brasileiro. Menos
sentimental que o jegue, cuja fama de bicho invocado rendeu ditados e
xingamentos (seu burro!), na briga entre animal e máquina, a moto ganhou o
páreo. E o jegue, pra variar, ficou pra trás, empacado no tempo.
Por que então não juntar o útil ao
agradável, opinou a ala pragmática e capitalista do Rio Grande do Norte?
Afinal, desde seu declínio como meio de transporte, acentuado nos últimos 15
anos, o jegue tem incomodado. Sobrevivente nas condições mais severas,
justamente o que fez seu império no sertão nordestino assim como nos bíblicos
desertos do Egito, o jegue, mesmo abandonado, sem comida ou bebida, comiseração
ou afeto, resiste a vagar pelo nada, negando-se a morrer. Estudos arqueológicos
sugerem que o Equus asinus, espécie domesticada originada no norte da
África há milhares de anos, tinha lá seu valor. Não só as ossadas analisadas
têm o típico arqueamento da coluna, como foram encontradas nas próprias tumbas
dos faraós.
Mas hoje ninguém quer os teimosos. Nas
feiras potiguares, os velhos jegues são vendidos por um real, muitas vezes para
serem sacrificados e virarem mortadela sem exatamente um certificado de origem
controlada. Quando escapam à sorte da faca, no afã do desespero da fome,
invadem as roças e comem as poucas plantas que verdejam no sertão. Nômades do
deserto, páreas excomungados, os jegues não só insistem em viver, mas teimam em
procriar. Assim, filhotinhos de jegue aparecem displicentes nas fotos de quem
passeia pelas estradas vicinais do grande sertão nordestino. Acidentes também
se repetem: animais atropelados na escuridão noturna trazem morte aos dois
lados do choque. Assim, a solução mais à mão é a que vale. Basta a cidade
prosperar, as motos gritarem nas ruas, e um jogo de gato e rato surge na calada
da noite. Uma prefeitura manda encher um caminhão com jegues, que dormem em
casa e acordam na cidade vizinha. À noite, são despejados na próxima. E assim
por diante.
Bicho ruim, o jegue. Mas foi dessa ruindade
que gerações de nordestinos viveram. Não era outro bicho a carregar no lombo
moringas com água e sacos e gente, muita gente nascida e morrida na vida
severina do sertão – senão o jegue. Eis o argumento da ala opositora à
exportação, ciosa do valor histórico do bicho. No site Petição Pública, um
abaixo-assinado contra a “carnificina” que a China, país que “não prima pelo
bem estar de seus animais”, estaria prestes a impor diz: enquanto os jegues
sempre foram os companheiros do Nordestino, “os verdadeiros asnos que causam
acidentes muito mais graves são aqueles que usam ternos caros e exercem cargos
públicos!”
Não é de hoje que o jegue é animal dado a
polêmicas. Nos anos 60, quando a carne asinina nordestina passou a ser vendida
para o exterior, um certo padre Antônio Vieira, de Várzea Alegre, Ceará,
protestou. Homônimo do grande orador do século XVII e ferrenho defensor da
dignidade do bicho, o padre foi um seminarista brilhante, estudou filosofia
na Itália e nos Estados Unidos, até de descobrir como a lei divina dos homens
poderia proteger as bestas. Em 1954, ao ler sobre o massacre mensal de mil
jegues para pesquisas científicas, decidiu tomar partido desse bicho que,
dizia, “é como a Santíssima Trindade ou como a penicilina. Faz tudo e mais um
pouco.”
Vieira fundou o Clube Mundial dos Jumentos, que tinha Brigite Bardot como membro e dez
mandamentos na linha socrática do “Só sei que nada sei”, sendo o primeiro
“reconhecer a própria burrice”, o terceiro “evitar e empáfia de dialético” e o
sexto “transmitir aos demais jumentos o que sabe”. Criou também o Museu do
Jumento. Ministrou cursos sobre como tratar o animal – no final entregava
um diploma em latim, assinado pelo asinus maximus (ele) e subscrito pela
máxima: “Até ontem você foi um burro, mas a partir de hoje será um
jumento”. E escreveu ainda um calhamaço de 1,2 mil páginas em quatro volumes
intitulado O Jumento, Nosso Irmão.
Em Bom Dia Para
Nascer, Otto Lara Rezende ironicamente elogia o trabalho do cearense. O
padre Vieira português, jesuíta mais antigo, defendera os índios de então,
tirando-lhes (em parte) da escravidão do trabalho para enfiá-los na escravidão
do espírito. Mas hoje os índios estariam bem protegidos, escreveu Rezende. “Não
está certo deixar o burro exposto à chacota geral.” Graças a Deus nasceu um
segundo missionário. Pois quem mais protegeria o “perissodáctilo pacato e amigo
do homem”, se não fosse o padre Vieira de Várzea Alegre, Ceará?
Nos anos 60, o padre dos burros foi eleito
deputado federal e usou o próprio plenário para falar contra a matança dos
jegues para exportação: tal comércio se encerrou à época. Pouco tempo depois,
Vieira teve os diretos políticos suspensos pela ditadura – não por causa do
posicionamento em prol dos asininos, espera-se. Só nos anos 90, sua obra
virou referência asinina internacional, quando uma ONG traduziu o primeiro
volume do livro, publicado pela American Donkey and Mule Society como The
Donkey, Our Brother. Quando morreu, em 2003, aos 83 anos, o padre Vieira
de Várzea Alegre, Ceará, recebeu um obituário do jornal britânico The
Telegraph, por ter “devotado quase cinquenta dos seus 60 anos de ministério a
essas bestas”.
A herança vingou. O professor Sebastião
Breguez analisou, em seu artigo, o “caso do jumento”. Após um apanhado das
aparições asininas na Bíblia, como a passagem em Marcos na qual Jesus entra em
Jerusalém num burrinho, ele avança na história e crava: “No Brasil, o jumento
foi meio de transporte importante para o redescobrimento do país pelos
bandeirantes, forçando Portugal e Espanha a romper com o Tratado de
Tordesilhas. Também foi elemento importante para o fim da Escravatura, pois
substituiu a força de trabalho escrava a partir de meados do século XIX.” E
conclui: “O jumento é para o nordestino o mesmo que o camelo é para o árabe ou
o beduíno do deserto. E foi salvo pela estratégia de comunicação usada pelo
padre Vieira.”
Sem o padre, os asnos ficaram a mercê da
fome chinesa, que devora um milhão e meio de jegues por ano. Não que se coma
jegue na China como nós comemos galinha no Brasil. A carne é cara. Mas é só
entrar em um restaurante típico no centro de Pequim e olhar no cardápio com
caracteres em mandarim e fotos dos pratos para perceber que as opções são
muitas para não incluir algum animal estranho ao decoro ocidental. Basta
balançar as mãos sobre a cabeça como longas orelhas e urrar um pouco (!) para
um prato fumegante de burro aparecer sobre a mesa. No melhor restaurante de
pastéis cozidos de Pequim, a carne asinina é iguaria. O pior: pastel de burro é
bom.
Tão bom que os chineses hão de insistir na
saborosa parceria com os potiguares. Estatísticas pouco confiáveis estimam que
a população asinina do Nordeste, que já foi de 17 milhões em 1964, seja hoje de
um milhão. Ou seja: se a parceria vingar antes de a tal transferência de
tecnologia chinesa aumentar a produtividade dos bichos potiguares, em menos de
um ano os chineses comeriam todos os jegues nordestinos.
Afinal, “os jegues estão marchando na
contramão da História”, afirmou Geraldo de Macedo, secretário de agricultura de
Currais Novos (RN). Se consultado fosse sobre o destino dos bichos por quem
tanto lutou, o padre Vieira (de Várzea Alegre, Ceará), de além-túmulo haveria
de fazer sua a clássica frase latina: Plus potest negare asinus quam
probare philosophus. “Mais pode o burro negar do que o filósofo provar.”
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