*Gilberto Ferreira
O rei Sabius Justus era um homem muito duro e tinha um coração de pedra.
Governava o seu povo com extrema rigidez e não admitia a mínima desobediência à
lei. Partia do princípio de que os seus súditos eram livres para escolher entre
o bem e o mal. Escolhido o mal, isto é, a transgressão, havia de se abater
sobre o infrator toda a desgraça da pena, independentemente das circunstâncias
em que o fato fora praticado.
As leis do reino eram severíssimas. O furto
era punido com a perda de um dos braços. O roubo, com a de dois braços e o
assassinato, com a morte do infrator, por enforcamento ou degola.
Um dia chegou às suas mãos o apelo de uma
mulher que fora presa sob a acusação de ter furtado um pão. A defesa
argumentava que a mulher, tendo filho pequeno a amamentar, não poderia
trabalhar, tendo praticado o furto apenas para matar a fome.
O rei, despachando de próprio punho, exarou
o veredicto: "o furto de um pão é o mesmo que o de um milhão de reales.
Tanto num, quanto no outro caso, a lei foi violada. No caso, com uma agravante.
A mulher tinha filho, não poderia lhe dar o mau exemplo. E, por esse plus,
mando que lhe corte também a língua!".
Lendo a decisão, o capelão invocou a
clemência de Deus para a mulher, mas o rei apenas respondeu recitando um antigo
e surrado ditado: dura lex sed lex - A lei é dura mas é a lei.
A vida seguiu o seu curso. O rei gostava de
luxo e mandou construir nas proximidades de seu trono um assoalho especial,
feito com madeiras importadas altamente sensíveis às pisadas dos mais
desavisados. E para proteger a beleza daquele piso decretou: "é proibido
pisar no assoalho com sapatos. O infrator será punido com a pena de
morte".
Claro que os súditos iam até ao trono
descalços. Entretanto, sucedeu-se que o filho mais velho do rei, estando muito
gripado e não podendo ficar descalço, resolveu visitar o pai sem tirar os
sapatos.
Um guarda prendeu-o e foi comunicar o fato
ao rei.
-- Veneranda Alteza, prendi um rapaz que,
desobedecendo as leis reais, pisou no assoalho sem tirar os sapatos.
-- Execute o rapaz. Dura lex sed
lex.
O rapaz foi levado para a sala de execução.
Em seguida, outro guarda veio até o rei trazendo um dos sapatos do infrator.
-- Veneranda Alteza, o rapaz saiu
esperneando e deixou cair um de seus sapatos. Achei que Vossa Veneranda Alteza
poderia ter interesse em examinar o objeto do crime.
O rei pegou o sapato e logo reconheceu que
se tratava do sapato de seu filho mais velho. Mas observou que na sola havia
uma grossa camada de veludo que não só protegeria o assoalho, como o deixaria
muito mais reluzente e bonito.
Foi aí que o rei concluiu que o fundamento
de sua norma não havia sido violado e que o rapaz nenhuma transgressão
cometera, embora tivesse agido literalmente contra a lei.
Então, pela primeira vez em toda a sua vida,
o rei voltou atrás, chorou e mandou libertar o rapaz imediatamente.
Mas já era tarde. A pena capital já havia
sido cumprida. Dura lex sed lex!
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* professor da PUC e juiz de Direito em
Curitiba/PR
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