por Elias Thomé Saliba
Inspiradas em US
Navy, muitas famílias batizaram seus bebês com o nome de “Osnavi”. Um menino
abiscoitou 5 dólares ao dar um brilho nos sapatos de Tyrone Power, um dos
muitos artistas a fazer shows- para os soldados. Os ônibus que levavam as moças
potiguares para festas na base norte-americana de Parnamirim receberam o gaiato
apelido de “marmitas”. Juntamente com os milhares de soldados americanos vindos
para Parnamirim Field, chegaram também a Natal a música das big bands, filmes,
chicletes, uísques e até calças compridas para mulheres. É com essas cenas
pitorescas e folclóricas que o filme Forall, o Trampolim da Vitória, lançado em
1997, registra a presença norte-americana na base de Natal durante os anos mais
críticos da Segunda Guerra Mundial. Até o burlesco título do filme refere-se a
um equívoco paródico, pois retrata os bailes domingueiros, não exclusivos dos
soldados americanos, ou seja, for all, abertos a todos. Mas o registro da
história apenas pelo seu lado pitoresco maltrata nossa combalida memória
coletiva e obscurece o real significado do evento.
1943: Roosevelt e
Vargas em Natal, de Roberto Muylaert (Bússola, 208 págs., R$ 36,90), é um
antídoto a essa espécie de amnésia bem brasileira, na qual a caricatura passa
ao largo da história. O tema central é o encontro secreto entre Franklin
Roosevelt e Getúlio Vargas, em Natal, no fim de janeiro de 1943. A partir de
fontes dispersas em arquivos brasileiros e estrangeiros, Muylaert reconstitui
os eventos paralelos que levaram a esse encontro, mostrando a maneira pela qual
ele serviu como catalisador de mudanças importantes no cenário brasileiro. A
ameaça alemã, de estender seu domínio marítimo ao Atlântico Sul, incluindo uma
possível invasão da costa brasileira, era onipresente. No ano anterior ao
encontro, 1942, cerca de 400 navios americanos foram torpedeados pelos alemães,
resultando em mais de 5 mil mortos e no bloqueio de toneladas de alimentos e
armas que não chegaram à frente de batalha europeia. Parnamirim Field
tornara-se estratégico, pois, a partir dali, a frota americana transformou a
rota Natal-Dacar num corredor para municiar os exércitos aliados na batalha de
tanques no Norte da África.
Roosevelt vinha de
Casablanca, no Marrocos, num Boeing Clipper que voava a baixa altitude pelo
oceano coalhado de frotas de guerra, mais um motivo para o sigilo da viagem. Ao
contrário do que se pensa comumente, Muylaert mostra como os dois governantes
não discutiram a instalação de bases brasileiras, mesmo porque isso já havia
sido decidido anteriormente. Como desdobramento das reuniões de Roosevelt com
Churchill e os diplomatas russos em Casablanca, eles conversaram mais sobre a
conjuntura geral da guerra, estabelecendo alguns acordos que redundaram na
efetiva participação nacional no conflito, com o envio dos soldados da Força
Expedicionária Brasileira.
Por meio da
narrativa de dramas paralelos, Muylaert mostra como o segredo do encontro foi
mantido até o final, pois Getúlio acabara de deixar seu filho (Getulinho, de 23
anos) em estado grave, sem revelar nenhum detalhe da viagem a Natal. Getulinho
faleceu dias depois, vítima da doença da qual padecia Roosevelt. Mais do que
ninguém, o americano poderia compreender o sofrimento de Vargas em relação ao
filho, atingido pela poliomielite, para a qual ainda não existiam vacinas.
Outro episódio paralelo e pouco conhecido que Muylaert refaz é o casamento de
Lutero Vargas com a charmosa alemã Ingeborg ten Haeff, em abril de 1940. A
apressada vinda de Lutero para o Brasil em avião militar pilotado por Bruno, o
jovem filho de Mussolini, o casamento, o nascimento da filha Cândida em 1941 e
o divórcio, logo após a guerra. Como um repórter que não quer perder nada,
Muylaert relata alguns desses dramas pessoais, incluindo muitos depoimentos
contraditórios, já que, como afirmou John Githens, o terceiro marido de
Ingeborg, os Vargas “foram e continuam sendo um bom manancial de fofocas”. Seja
como for, a narrativa desses dois dramas paralelos ao encontro de 1943 adiciona
um colorido afetivo ao conturbado panorama histórico.
As histórias da
Segunda Guerra Mundial, em geral, silenciam sobre o episódio de Natal,
reduzindo-o no máximo a uma nota de rodapé do jogo diplomático. Assim como os
encontros entre Roosevelt e Stalin, tais cenas inoportunas foram varridas da
memória pelo ambiente pesado da diplomacia da Guerra Fria pós-1945. As
biografias de Roosevelt também se encarregaram de desinfetar de sua trajetória
encontros com déspotas e ditadores. As promessas de Roosevelt a Vargas,
incluída a vaga na ONU e, sobretudo, um futuro bônus de participar no Conselho
de Segurança, foram abandonadas no pós-guerra. Mas, como revela a
correspondência entre Stalin e Roosevelt, de recente publicação, muita coisa
importante foi abandonada após a morte do americano.
Menos de dez dias
depois da morte de Roosevelt, em 1945, o embaixador russo Vyacheslav Molotov
(que era para Stalin o que Harry Hopkins era para Roosevelt) seria destratado
por Harry Truman. “Ninguém jamais falou assim comigo”, reclamou Molotov.
“Cumpra sua palavra e não o tratarei dessa maneira”, rebateu Truman. O diálogo
seria inconcebível na presença de Roosevelt. O restante da história é bem
conhecido: quatro meses depois da morte de Roosevelt vieram as bombas atômicas
sobre Hiroshima e Nagasaki e as cinzas da Guerra Fria manietaram o diálogo e
calcinaram as mentes. A narrativa do encontro de 1943 só reforça o perfil
diplomático notável do presidente americano, a quem Isaiah Berlin definiu como
“um farol iluminando o futuro”. Roosevelt foi o único personagem controverso a
obter unanimidade de dois historiadores tão diferentes como Arthur Schlesinger
Jr. e Eric J. Hobsbawm. Já Vargas, com seu comportamento ambíguo em 1943,
apenas reacende o juízo definitivo de Raymundo Faoro sobre o ditador: “Um
chuchu sem gosto e inodoro, que assume o sabor do molho com que o condimentam:
ele protela, procrastina, transfere, demora, adia, prorroga, esperando ninguém
sabe o quê. Bem, ele sabia o que esperava”.
O episódio de Natal
nada acrescenta à história da Segunda Guerra, mas fornece novos ângulos de
visão e outras perspectivas, nem sempre agradáveis à nossa cômoda amnésia
histórica. Até mesmo o flagrante preservado na famosa foto do jipe, com o
sorriso e a bonomia de Roosevelt e Vargas, apenas escondia as violências e as
perversidades da guerra. Perversidades tanto do front externo quanto aquelas do
front interno: a violenta repressão ditatorial em pleno Estado Novo que nenhum
sorriso, nem a burla da caricatura, poderia fazer esquecer.
- Transcrito da Carta Capital
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