Matheus Pichonelli
Corre na internet
um vídeo produzido pela TV Bandeirantes da Bahia em que uma repórter bonita e
bem humorada entrevista um jovem acusado de estupro. Chega a ser educativo – ao
menos para quem achava que, a essa altura do campeonato, era impossível superar
as pirotecnias de programas com o Latininho, o chupa-cabra, os testes ao vivo
de DNA, a banheira do Gugu e as sessões de descarrego.
O mais completo
tratado das relações de poder não chegaria tão longe: o jovem, cuja pobreza
pode ser exposta pela sequência de dentes quebrados, está algemado diante das
câmeras. Como advogado de banqueiro não defende desdentado, ninguém intercederá
por ele nas páginas de jornais ou tribunas do Congresso pelo direito de não ser
exposto nem antes nem depois do julgamento. Azar o dele, sorte da repórter –
que usou o microfone e o canal direto com a direção do programa para chicotear
o sujeito que se acreditava alforriado. Abaixo da tela a produção destaca o
“chororô”, com direito a intervenções de efeitos sonoros (o choro de um bebê) a
ofuscar a fala do suspeito. Acuado e com um hematoma no rosto, o jovem passa a
dar a lista de familiares que poderiam testemunhar em seu favor. Às lágrimas,
jura que jamais “estrupou” alguém.
A acusação, grave,
então vira piada. A indignação da repórter, até então defensora da vítima, é
desmanchada sem muito esforço. A justiceira posa então como defensora da língua
portuguesa, com base no escracho alimentado pelo comando do programa. A mistura
do jornalismo policialesco com o “método Pânico da TV” de humilhação humana dá
nisso: o direito à defesa vira piada para a audiência.
Entre ela e o
acusado não existe polícia, Ministério Público, Defensoria nem juiz de Direito.
Estivesse vivo, o
jornalista gaúcho Apparício Torelli, o Barão de Itararé, talvez tivesse de
mudar a sentença segundo a qual, para conhecer Inácio, era preciso coloca-lo
num palácio. Hoje bastaria jogar um microfone em sua mão.
Não foi o primeiro
nem será o último açoite no ar que o Brasil testemunha, mas vale lembrar: a
tevê é uma concessão pública (talvez a capitania hereditária mais valiosa do
País) e para operar é necessária a benção das autoridades. A repórter teve
raros longos minutos para esticar a sessão de tortura, sem que ninguém
aparentemente a detivesse. Pelo contrário: ela estava à vontade, com carta
branca da direção do programa, das autoridades que regulam a programação e dos
órgãos que outorgaram o direito de levar ao ar o que seu comando bem
entendesse.
A repórter, de toda
forma, não deveria estar constrangida: sua audiência não estava, seus chefes
não estavam, seus governantes não estavam. Em outras palavras, ela só
reproduziu a própria noção de justiça de um país que mal garante o direito de
alguém se defender.
É o mesmo país que
hoje constrange quem se declara vítima de um abuso semelhante – ao menos se
essa vítima for uma personalidade como a Xuxa. Horas após contar, em uma
entrevista ao Fantástico, que sofreu abuso sexual na infância, a
apresentadora virou pauta obrigatória nas rodas de conversa e meios de
comunicação.
De repente, todos
tinham algo a dizer sobre o depoimento: personalidades com status de
formadores de opinião começavam a destrinchar o que se passava na cabeça da
apresentadora. Uma socialite a chamou de doida. Outros a mandaram se
queixar numa clínica, e não em público. Muitos trouxeram fatos de sua vida
pessoal para deslegitimar a fala: afinal, o trauma não a impediu de namorar
esportistas ricos nem de expor as pernas, dela e das paquitas, para as crianças
coladas na tevê. Em suma, o mundo viu na revelação um oportunismo raro para
chamar a atenção.
E onde estão esses
mesmos formadores de opinião quando órgãos de defesa dos direitos humanos
lançam campanhas contra a pedofilia? Em alguma palestra de auto-promoção e
metalinguagem. Na vida real, foi preciso uma celebridade expor um drama pessoal
para que um tema tão delicado quanto complexo viesse à tona. Um crime que tem
no silêncio um terreno propício para a proliferação.
Por se tratar de
uma figura pública, a revelação de Xuxa poderia encorajar vítimas do presente a
quebrar o silêncio, denunciar a agressão e buscar justiça.
Mesmo assim, o
esforço do público e dos formadores de opinião para transformar o episódio em
piada foi notório. Era como se a repórter covarde a empunhar o microfone como
chicote na tevê tivesse se multiplicado Brasil afora, desta vez para açoitar a
celebridade que teve a audácia de confessar um trauma em público.
E o que a Xuxa e o
jovem açoitado pela repórter na Bahia têm em comum? Nada, a não ser a exposição
diante de uma multidão sangrenta e incapaz de lidar com seus próprios crimes de
maneira honesta. Casos de abuso sexual existem aos montes, mas poucos tiveram a
coragem de se expor e gritar para que não se repitam. Só quem passou por momentos
assim sabe o quanto pesa a distância entre o silêncio e a exposição. Não parece
produtivo combatê-los na base do escracho ou da hipocrisia.
- Revista Carta Capital
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