Quem já não passou raiva por ser desrespeitado no trabalho, ficando com a sensação de que não lhe deram o devido valor? Agora, imagine se alguém realmente te avaliasse, feito compra de burro de carga, e colocasse um preço. Já falei do seu Antonio aqui, mas estou resgatando a história completa para que os leitores tenham uma idéia de até onde vai a ignorância – é longo, mas como é feriado prolongado para muita gente, há tempo para ler. A fala de Antônio, com a ajuda do documentarista Caio Cavechini, foi transcrita do jeito que foi dada – livre, sem as correntes da língua portuguesa.
Creio que o resgate é válido ainda mais em tempos de crescimento econômico, que faz surgir reivindicações de ambos os lados – melhores salários, condições de serviço mais dignas, participações nos lucros, mas também reclamações quanto ao custo trabalhista e a necessidade de flexibilizar a legislação. Isso ficou claro nesta semana quando o Supremo Tribunal Federal tratou do tema da proporcionalidade do aviso prévio com as previsíveis reações de entidades empresariais e sindicais.
A história de Antônio é limite, mas exemplifica bem a medida do desafio que temos para cortar as heranças escravagistas presentes em nossa sociedade, que não se resumem ao odioso trabalho escravo contemporâneo, mas perpassam as relações de compra e venda de força de trabalho. A Casa Grande e a Senzala, seja no campo ou na cidade, continuam vivas e a visão de inferioridade do trabalho imposta pela classe social dominante ainda guarda relação com a que havia por aqui há 150 anos. Da mesma forma, o posicionamento de parte dos trabalhadores, por vezes preferindo o conformismo ao embate, por desalento, cansaço ou falta de perspectivas, também não mudou como deveria. Foram-se os rótulos, ficaram as garrafas.
Anos atrás, Antônio, foi vendido como escravo no Maranhão e obrigado a trabalhar para Miguel de Souza Rezende, fazendeiro mais de uma vez flagrado pelo governo federal utilizando mão-de-obra escrava. Antônio, vítima de tráfico de seres humanos, foi comprado para limpar o pasto e derrubar floresta amazônica. Morador de Açailândia, na banda Oeste do Maranhão, terra de carvoarias e fazendas de gado, conseguiu o direito a uma indenização. Pouco mais de R$ 10 mil. O fazendeiro recorreu – básico, ao invés de pagar a merreca. Lembrando que, no Brasil, o acesso à Justiça é diretamente proporcional à capacidade de se pagar por ela.
Segue o relato:
“Rapaz… dessa fazenda, como eu fui parar lá… Que naquela época era mais difícil serviço aqui dentro. Hoje não, já tem muito. A todo canto a gente acha um servicinho pra fazer. Pra quem quer trabalhar, pra quem não quer, não acha não. É roubar… Então, eles vieram atrás de gente para levar lá pro Miguel Rezende. Então, ele chegou e o cara foi na rua e aí anunciou que queria 42 peão. Então esses 42 peão foi junto, tudo. Com dois dias eles deram conta de ajuntar esses 42 peão.
No dia que nós saímos para a casa do Miguel Rezende, em Imperatriz, nós cheguemos lá, nós fumos vendido! Oitenta reais pra cada cabeça, os 42. O vagabundo morava lá no Casqueiro, num sei se ainda mora, num cabaré ali. Então ele pegou esse dinheiro lá com patrão e passou nós já pra outro. Quando nós cheguemos em João Lisboa, nós fomos pedir que queríamos merendá ele disse: “que merendá, nada! Cês pegarem muito chiado, cês pega tapa logo”. Barroso… Aí nós fiquemos por ali. Aí nós fumo pegá a mercadoria para botar no tapa. Aí o cantineiro, rapaz, disse que nós num podia ficar sem comer não, “eles merendaram em açailândia”. Aí ele passou um bocado de pacote de bolacha pra nós. Quando nós chegamos lá na sede, foi dez horas da noite. E o que comemos mesmo foi só um banho e dormimos com essas bolachinhas. No outro dia, todo mundo se arregaçou de se caminhar três quilômetros de pé, atravessemos o rio, fumo pro outro lado. Quando chegou lá, todo mundo com fome-de-manhã-caiu-na-cacaia-pra-cortar-pau-de-motosserra-uns-carregando-outros-só-limpando-outros-derribando.
Aí nos fizemos o barraco. Quando deu seis horas, nós cabamos de fazer um barracos de 30 metros assim, de comprido. Com os caibros no chão, coberto com plástico de uma lona preta. Aí pegou uma empreita, pra nós era quatro. Desses 40, nós fiquemos em quatro. Aí nós peguemos dez alqueires em branco. Quando deu com 25 dias eu falei pro Barroso, Barroso eu quero um dinheiro para mandar pra a minha família em casa, porque lá não ficou nada, vocês não me deram nada. Então pra comer eu tenho que trabalhar e mandar dinheiro. Ele disse: “hum, rapariga de filha de uma égua nenhuma desses que têm aqui não vai nenhum dinheiro. Tirando antes de 90 dias não vai nenhum dinheiro pra essas raparigas de vocês na rua”. Aí parou, trabalhemos o resto do dia. Jantemos, quando foi o outro dia, tornemos a ir pro serviço, trabalhar. Quando completou 30 dias eu disse: meninos, quem quiser ir embora mais eu, nós vamos. Aí o cantineiro avisou nós: “rapaz não sai de nenhum de vocês, se saírem vocês morrem. Tem muito jagunço na fazenda”. Nessas alturas, tinha um rapaz que era veeado, de Chapadinha. Esse rapaz nós escutemos os tiros seis horas. E esse rapaz, até hoje, ele nunca voltou pro barraco.
Rapaz, eu não tenho medo de homem não! Eu posso morrer, mas eu vou me embora. Eu não vou ficar aqui trabalhando a vida todinha, escravizado, para não mandar nada pra minha família. Aí quando nós acabemos de arrumar ali, eles tinham ido prum jogo lá no Jabuti, que é um povoadozinho de sem-terra. Aí chegou a corriola todinha que estava pra lá bebendo cachaça. Chegou tudo. Chegou o cantineiro e passou logo pra eles: “olha tem quatro homem que vai sair”. Aí ele começou logo a bordar taca mais os jagunços dentro do barraco, batendo, jogaram o cavalo no Deodete, o cavalo pisou no aqui assim dele, arrancou as duas unhas dele, ficou só a carne. Aí começaram o quebra-quebra.
Aí nós saímos, eles ficaram em argumento com os outros e eu sai com mais três. O menino que ficou com as unhas arrancadas ficou lá, eu disse depois nós volta pra buscá ele. Deixa esfriar mais. Aí quando nós sai, quando nós andemos uns 200 metros, vieram aqueles cães grandes, dois cachorros grandes, do tamanho de um bezerro. Dois se jogou pra dentro do capim.
Eu sou aquele homem que embora eu quero ver meus pés dentro dum caixão, mas não corro com medo dum homem, eles chegaram e me cercaram. Barroso era o mais de frente, eu peguei e meti a faca na barriga dele. Eles disseram mata o homem. Eu disse não mata o homem, se ele me mata, ele me mata, aí ele me atira, no que ele me atirá, vocês atirá nele, ele me mata, porque tinha uma faca entrando na minha barriga. Aí fiquemos ali, mata num mata, mata num mata, mata num mata. Aí chegou o gerente e disse pra eles: “rapaz, vocês libera esse homem, libera esse velho, porque se vocês mata ele, tem 42 homem, esses homem entrega essa fazenda”. Aí liberaram nós.
Aí quando nós viajemos um pouco, de noite, pra todo canto tinha piquete, pra todo canto piquete para matar nós. Ainda voltei pra pega o homem doente, carreguemos ele nas costas um pouco, aí ele melhorou, rasguemos uma camisa, marremos no pé dele. Nós viajemos três quilômetros perdidos, voltemos viajemos outros três, e os meninos dentro de uma coxas velha de farinheira.
Um friiiiio! E foooome! E de lá nós tiremos pra sair no… no Córrego Novo. Três dias comendo mamão véio e verde, raizinha de macaxeira e baiguinho de feijão verde. E foi nesses três dias o que nós comemos.
Mais isso já tava com seis anos, já tava esquecido… Alembrar do passado é sofrer duas vezes… O cara massacrado, panhar, cheguei em casa todo inchado de boca de arma, todo massacrado, a comida ficou a quinze reais cada pratinho de refeição, as bolachas ficou a seis reais, cada um pacote – naquele tempo não tinha esse preço. O de comer e esse serviço que nós fazemos nós não recebemos um tostão inté hoje. Nós já fomos em audiência duas vezes em São Luís, três vezes em Imperatriz, três aqui em Açailândia. Quando eu caí doente, eu não pude ir pra Brasília, foram no meu lugar, duas vezes. Aí parou, pra mim já tava esquecido. Agora, lembrar disso magoou de novo. Pra mim foi mesmo que tenha sido agora como perguntando nós, falando aqui.
Rapaz, eu hoje adepois que me aposentei, eu não sai mais para trabalhar pra fora pra ninguém. Que sempre eu tenho uma famizinha de trabalhar. Porque na idade que eu tô…tá faltando três meses para 75 anos…eu trabalhando é saúde pro meu corpo. Porque se eu parar, pronto, a carne vai indo, engorda, amolece o bucho e não tem coragem nem de andar! Eu trabalho todo o dia como eu tô te falando tem dia que eu faço diária de 50, 60. Mas minha morada é seca, seca mesmo, eu não paro não. Essa mulher, tem de dois anos que estamos junto, essa mulher foi uma grande coisa que Deus me deu. Porque eu vivia com quatro vagabunda ali, cuidando da filha que destruíam tudo o que eu tinha. Hoje tá com dois anos que eu tô nessa casinha, mas eu num acabei de fazer ela, porque eu vivo empregando em lote: essa áréa pro lado é minha, lá na esquina é minha, esse lote que travessa pro lado é meu. Tô com 11 lotes, e eu não devo a ninguém desses lotes.
Pra adquirir terra só se vir uma reforma pra cortar terra. Mas invasão que nem eu vejo a polícia matando, batendo, não quero não. Eu fico mesmo aqui dentro da minha areazinha, roçando pra riba e pra baixo, mas não vou não. Mas se vier reforma eu ainda vou tentar. Cortada e entregada, que eu não tenho mais idade, a mulher ainda tem idade, mas eu não tenho não.
Eu desde da idade de 11 anos que meu pai me executava em mexer com lãzinha do Ceará lá pelos campos de Caxias. Desde os 11 anos que eu mexo com roça. Meu pai morreu, minha mãe morreu, tá tudo enterrado ali em Caxias. Nós somos 32 irmãos dentro de três famílias de meu pai. E eu não sei aonde tem nenhum, vivem largado no mundo. Minha mulher morreu, outra também morreu e tá enterrada no município de Caixas, a ex vagabunda eu larguei aqui. Hoje, eu vivo só mais essa aí e uma criancinha que eu tô criando. Dali eu tenho um filho, tenho dois netos, tenho uma filha que tá pra acolá.
A Federal tá baixando aí, tá dando regulagem na turma. Tem alojamento, tem tudo. E hoje só entra pra dentro de uma fazenda pra roçar juquira, carteira assinada… 90 dias… no contrato. Quando sai ainda paga os direitos dele. Mas aqui nego já sofreu demais, demais. Hoje, ta mió… Os fazendeiros fazem isso porque são poderoso. Eles são poderoso. Então não tem cuma, o cara tem que ir roçar juquira, fazer qualquer coisa pra dar de comida pra família. Aqui mesmo nessas pontas de ruas que eles chama de pólo moveleiro aqui tem gente, menino, que se ele ferve a água de manhã, de noite ele não tem para ferver a água para os filhos. Anda pedindo nas casas pra poder escapar, porque não tem um emprego”.
- Transcrito do Blog de Sakamoto
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