sábado, 16 de fevereiro de 2019

A PROFESSORA

Texto de José de Paiva Rebouças

Ameaçada três vezes, uma faca no pescoço, um dedo em riste e um aviso na parede, a professora decidiu andar com um revólver. Nunca havia dado um tiro sequer, mas gostaria muito, principalmente em sala de aula, na cara do marginalzinho. E na primeira oportunidade, sacou o trabuco da bolsa e disparou de olhos fechados. Sangue cobrindo as cadeiras, manchando o quadro negro e escurecendo o chão. Jovens mortos, outros baleados, gritaria, pandemônio, polícia, imprensa e ela no meio de tudo aquilo sem reação de nada.

Caiu em si somente alguns instantes depois, então gritou feito louca para que a prendessem e a matassem, mas lhe deram um copo de água com açúcar e pediram-na que se acalmasse. Nós a entendemos, disseram, enquanto continuavam indo e vindo, atentos apenas ao cenário da catástrofe.

Deram-lhe um calmante e a levaram para casa. Dormiu como uma pedra. Ao acordar já era outro dia. A cabeça nas mãos e uma vontade imensa de vomitar as vísceras. Um nó na garganta, um frio na espinha. Ligou no noticiário e só falavam na chacina da escola, mas nenhuma reação contra ela. Ao contrário, puxavam a ficha das crianças mortas, chamavam-nas de delinquentes e culpavam os pais. A professora, de certo, tivera um esgotamento e fizera o que qualquer um faria em seu lugar, comentavam.

Cortou o pé quando o copo caiu de sua mão e espatifou-se no piso. Estava louca, não ouvira aquilo. O linchamento era o mínimo que merecia, não a compreensão. Via as imagens, as fotos das crianças e o sangue no pé quando se vomitou por inteira. O remorso lhe partiu ao meio. Doeu-lhe o estômago como se tivesse engolido chumbo derretido.

Saiu à rua como estava, descalça, o pé sangrando e um pijama listrado. Queria ser linchada. Morreria por uma pedra, um pedaço de pau, mas à medida que caminhava, percebia que ninguém a percebia. Continuava sendo um rosto comum apesar das imagens na televisão e redes sociais.

Atônita, olhava o trânsito, as ruas da periferia, finas e sujas, como a sua vida agora. Precisava morrer, devia ter atirado na própria boca, arrancado o cérebro e se misturado ao sangue dos alunos.

Gritou pela polícia que passava sem pressa, mas os policiais só acenaram. Desesperada, correu novamente, sedentária, os pés em desacordo lhe fazendo parecer ainda mais estranha.

Cruzou a principal, seis faixas, três da cada lado, mas nenhum carro a atropelou. Ninguém nem mesmo buzinou para ela. Voltou, abriu os braços, sentou-se no asfalto, deitou-se, mas continuou viva.

Uma questão incompreensível, uma angústia perfurante, pior do que qualquer golpe na pele: uma gilete cortando, um prego na palma da mão; o corpo ralando no asfalto. A sensação de ter matado doía, de ter matado crianças doía muito mais, e a falta de punição a atravessava como uma furadeira. Cortava a carne em parafuso, mas não sangrava, coagulava e virava pedra. Sensação de gazes esquecidas na cirurgia, de um dia sem beber água e sem comer.

Quanto mais andava, mais se enfurecia consigo mesma. As imagens não saiam da tevê, mas ninguém a caçava, nem a atingia. Todos estavam solidários à sua reação bestial.

Quando comprou a arma queria atirar, quando a sacou na sala de aula pensou o mesmo. Era um jogo até tudo terminar, até ver a mancha púrpura sob as carteiras, o fim de vidas que sequer tinham começado. Sem balas correu para ser atingida, mas ninguém a notou, depois percebeu que alguém fazia a sua defesa e aí todos seguiram aquela opinião. Todos a entendiam, a perdoavam e aquilo era tão esdrúxulo que ela pulou do décimo primeiro andar.

Antes de alcançar o chão, pensou que jamais havia subido tão alto. Escolhera o Grande Hotel porque sempre quis se hospedar ali: usar a banheira, deitar na varanda, gastar de uma só vez o salário.

Entrou no prédio, pegou o elevador e subiu até vê-lo parar e abrir as portas. Aproveitou a distração da camareira, chegou ao quarto, fechou a porta e caminhou olhando a varanda de onde se podia ver parte importante da cidade.

As batidas na porta, os gritos no corredor e o barulho tão comum de sirenes e buzinas onze andares abaixo não a distraíram.

Sentiu alívio quando a brisa lhe soprou os cabelos. Sorriu e saltou de braços abertos até não ver mais nada. Bombeiros a tiraram de um grande balão de ar que aparou sua queda. Foi contida e calada com um calmante quando tentou gritar. Acordou em casa, a tevê ligada, as cenas da chacina se repetiam no jornal da manhã. Na rua, as pessoas diziam aos repórteres que ela não tinha culpa e que qualquer um reagiria da mesma forma estando em seu lugar.

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